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EVOCAÇÕES 41
BOLETIM APE | OUT/DEZ 2023
Na 2ª Secção do Instituto, na Estrada de Benfica 374,
nos anos sessenta do século passado, para quase a
totalidade das disciplinas havia uma Sala dedicada
com Professor responsável, diversos Laboratórios e várias
Oficinas.
Havia as Salas de Matemática do Professor Túlio
Gonçalves, de Ciências Naturais do Professor Major Médico
Monteiro, de Geografia, de Desenho, Laboratórios de Física
e Química, Oficinas várias e para a disciplina de Português
existia a Sala do Professor Major Alves Ribeiro. As Salas sem
um responsável aqui enunciadas eram frequentadas por
vários Professores dos diferentes Cursos e Turmas.
A disciplina de Português que frequentei durante 5 anos
lectivos, de 1964 a 1969, três Professores foram os meus
mestres. No Ciclo Preparatório, hoje 5º e 6º anos, foram o Dr.
Victor Santos e o Dr. Salvador Martins,
de alcunha “O Grilo”. Do primeiro
recordo que era um dos Professores
mais velhos do Instituto, sendo o mais
velho de então em 1964, o Professor de
Desenho Rogério Berger que faleceria no
início do ano de 1965. Do segundo, o Dr.
Salvador Martins, recordo como um bom
Professor e grande amigo e defensor do
Instituto. Fora das salas de aula dialogava
com os alunos e sendo um “benfiquista”
ferrenho nas quintas-feira depois das
competições europeias e se o Benfica
tivesse perdido ou empatado, tinha
sempre um erro a apontar táctico ou
estratégico, do treinador, para justificar
o desaire….
O Francês também foram cinco anos
de frequência e o Inglês tive somente
três anos e a partir do 7º ano.
Mas este artigo é para vos apresentar
e recordar o meu terceiro Professor de
Português, o dos anos 1966 a 1969, o Major de Infantaria Alves
Ribeiro de alcunha “Amélia”. Era o Professor de Português
do Ensino Secundário, dos 7º, 8º, 9º anos de hoje, ao tempo
1º,2º,3º anos de Indústria.
Logo nas primeiras aulas do 1º período, do 7º ano,
estudávamos as noções básicas do Latim, grande
novidade para os alunos e as suas declinações muito nos
atormentavam…
Mas o interesse pela disciplina recaía no célebre livro de
leitura e estudo que seguíamos os denominados “Selecta
Literária”; Livro de capa grossa e apelativa pelo colorido que
apresentava.
Para além do referido Livro, nas aulas líamos e
estudávamos os “Lusíadas” de Luís Vaz de Camões, do I ao X
Canto, inclusive o IX Canto, da Ilha dos Amores, considerado
inapropriado para a moral da época. Aqui e noutros casos, o
Major Alves Ribeiro mostrava grande coragem e ruptura com
a obscuridade intelectual dos tempos antes de Abril.
Dividíamos as “orações” enunciando os “sujeitos” os
“predicados” e os “complementos”. Na altura fixei para
Manuel Pimenta
19640022 Sala de Português
sempre que a última palavra do último Canto, o X, é a
“enveja”, assim escrita ao tempo do século XVI Camões
assinalava assim indelevelmente uma característica malévola
dos portugueses já presente na sociedade dessa época.
Na “Selecta” encontrávamos os textos e sonetos do
Bocage, os poemas de Florbela Espanca, Camilo Pessanha,
Fernando Pessoa, António Nobre, Mário Sá-Carneiro, e os
textos de Camilo, Eça, Pinheiro Chagas, Aquilino Ribeiro,
Almada Negreiros, Miguel Torga, Ferreira de Castro e muitos
outros.
Mas apresentar o Professor “Amélia” é, também, falar
de o militar de patente Major da Arma de Infantaria que vi
fardado uma única vez e com farda nº 1, nunca se apresentando
com a farda de serviço ou nº 2, a de cor verde azeitona, um
militar sem ar de militar que vestia sem fato e sem gravata
e sendo um dos mais velhos vestia como
um jovem com casaco ou blazer, pulôver,
camisas e calças coloridas, mas discretas,
nunca com algo preto ou cinzento.
É falar também de algumas das suas
grandes aulas onde teatralmente lia textos
e poemas magistralmente que recordo
aqui alguns: o “Mostrengo” de Fernando
Pessoa; “Batem leve, levemente”...
Poema de “Balada de Neve” de Augusto
Gil”; poemas de Florbela Espanca; poemas
de Camilo Pessanha do livro “Clepsidra”...;
do Canto IV dos Lusíadas “O Velho do
Restelo”...; sonetos do Bocage:
“Já Bocage não sou! À cova escura.
Meu estro vai parar desfeito em
vento...”
“Camões, grande Camões, quão
semelhante.
Acho teu fado ao meu, quando os
cotejo...”
Adorava essas aulas...e com elas passei a ler a literatura
portuguesa com mais interesse e melhor atenção tentando
decifrar as mensagens interiores e míticas dos poemas e
textos.
A sua magreza, tronco curvado e sempre de colarinho
aberto permitia-nos comentar e inventar o estado do tempo;
pêlo do peito, saído do colarinho, era sinal de bom tempo e
sem chuva; pêlo escondido sinalizava mau tempo…Os alunos
eram “maus”, mas sem crueldade e com respeito nestes
comentários…
A sua simplicidade, o ser bom Professor, idoso e rebelde
na procura para a nossa leitura das escritoras e escritores
portugueses, deu-me desde esse tempo, que perdura ainda
hoje, o gosto da leitura e a coragem de escrever. No Instituto
li muitos clássicos da literatura de várias origens e comecei e
adquiri o gosto de escrever pequenos textos e poesia…
Da parte dos alunos sou testemunha do muito respeito a
esta figura exemplar de competência e sobriedade…
Com gratidão recordo… O Senhor Major Alves Ribeiro...o
“Amélia”.