Page 12 - Boletim 267 da APE
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 CRÓNICAS | VIAGENS
BOLETIM APE | OUT/DEZ 2022
  A passagem pela Cascata de Gelo revela-se mais perigosa do que o esperado. Fruto provavelmente do aquecimento global, o glaciar está em muito mau estado, por vezes o gelo cede debaixo das nossas passadas, enquanto olhamos com apreensão para alguns dos blocos de gelo em equilíbrio precário. No topo da Cascata de Gelo espera-nos um longo caminho até atingir o Campo I, armadilhado por inúmeras crevasses, fendas no glaciar com dezenas de metros de profundidade, por vezes escondidas debaixo de uma camada fofa de neve. Para nossa segurança caminhamos em equipas de 3, amarrados entre nós com uma corda, que permitirá, esperançosamente, aparar a queda caso alguém caia numa destas crevasses.
Durante os dias que se seguem sucedem-se algumas peripécias: um montanhista paquistanês da nossa equipa cai numa destas fendas, partindo um osso do ombro, pelo que tem de ser evacuado de helicóptero. A nossa segunda rotação fica comprometida, pois as cordas fixas não estão ainda instaladas até ao Campo II. O tempo piora, neva muito, tornando a montanha mais perigosa e propensa a avalanches.
Ainda assim estamos preparados para o ataque ao cume no dia 18-jul quando partimos de madrugada do Campo Base. Pernoitamos no Campo I, depois no Campo II e finalmente atingimos o Campo III, a 7000m de altitude, após transpor várias paredes de gelo que se estendem desde os 6000m, por vezes com declives até aos 60°.
Aproxima-se o momento da verdade que porá à prova os 6 meses de treino que, esperançosamente, me deixou preparado para esta demanda. Até agora senti-me muito bem e estive sempre forte.
No dia da saída para o cume está agendado para a madrugada do dia 22-jul, ventos fortes fustigaram o nosso acampamento, pelo que não consegui dormir e descansar. Ainda assim, à hora marcada, como qualquer coisa apressadamente, bebo um café frio preparado de véspera, calço as botas, coloco os crampons e saio para o frio da noite.
Partimos a um passo vagaroso, em fila indiana. Mais cordas fixas, mais paredes de gelo inclinadas que dificultam a progressão. O frio da noite deixa-me a cara dormente, a respiração torna-se cada vez mais difícil e começo a aperceber-me que não me sinto bem. Começa com um desconforto gastrointestinal e de repente estou a tiritar de frio, estou num estado febril. Aos 7400m decido atirar a toalha ao chão, hoje não é o meu dia. O nosso guia ocidental, David Hamilton, desce comigo até ao Campo III, também ele não se sentia bem.
Demoro 2 dias a regressar ao Campo Base, onde chego cansado, mas feliz por estar em segurança. Depois de desmontados os campos na montanha e reunida a equipa, iniciamos o nosso caminho de regresso. Estamos de novo no glaciar Baltoro, desta vez com menos neve e nuvens, pelo
que somos brindados com vistas espetaculares do K2 e do seu vizinho Broad Peak.
De volta aos jipes que nos transportam até Skardu e ao primeiro banho depois de 50 dias na montanha. No dia seguinte um voo interno das Linhas Aéreas Paquistaneses leva-nos até Islamabad. Mais perto de casa, mas ainda me falta o voo internacional, com escala (e dormida devido a atraso) em Istambul.
O calendário marca a data de 31-jul quando insiro a chave na minha porta de casa. Reencontro a família, morto de saudades dos meus 2 pequenotes e da sua mãe, verdadeira heroína destas minhas expedições que aguenta o barco na minha ausência.
Quando não atinjo o cume de uma montanha (que felizmente não aconteceu muitas vezes) perguntam-me se fico dececionado. De forma nenhuma! Na minha abordagem ao montanhismo, o “caminho” é o meu “objetivo”. O cume será sempre apenas a cereja no topo do bolo. Sou um privilegiado por poder pisar estes remotos gigantes de rocha, neve e gelo. Apreciar paisagens fantásticas, vivenciar diferentes culturas, esticar os meus limites físicos e mentais. Mas sempre em segurança, pois parafraseando um famoso montanhista “chegar ao cume é opcional, regressar é mandatório”.
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