Page 42 - Boletim numero 257 da APE
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 EVOCAÇõES
Crónica de uma grande dor
 (À memória de uma jovem a quem a Parca, com a sua maldita gadanha, ceifou muito
            Écedo a vida)
Luís Alves de Fraga
19540282
Como náufragos, em momento de engolir litradas de água salgada, lá nos ajudávamos como podíamos. Esbra- cejávamos no meio da vaga altaneira da nossa ignorância e do descuido da falta de estudo. Mas, gaita, as revistas de banda desenhada eram uma tentação bem maior que reti- ravam qualquer fugidia vontade de deixar escorregar os olhos pelas linhas enfadonhas dos manuais escolares.
Fizemos o mesmo que todos; não fomos nem melhores nem piores do que os restantes companheiros! No fundo, a disciplina do internato, o rigor militar de quem, ainda fora da idade adulta, começa a fazer continências milita- res, infiltrou-nos saber, preparou-nos para a Vida. uma Vida que não sabíamos, naqueles anos tão lá atrás, o que nos reservava.
O pardalito com sardas na face foi crescendo, já fazia a barba, e descobriu, descobrimos, tinha uma imensa capa- cidade física. Pequenito, mas ágil, forte, elástico, com uma genica fora do normal. Eu, palito que se estende direito ao céu sem nunca lá chegar, ficava-me pela ginástica do pre- go; uma classe igual à de todos os outros trapalhões que metem os pés pelas mãos e não sabem fazer mais do que
uma ou duas habilidades à custa de muito malhar com o esqueleto no chão duro do ginásio. Verdade seja, também não fui ginasta intelectual; fui igual
aos outros.
Para o internato entrou, mais tarde, um irmão
do pardalito. Não se parecia com ele, nem tinha as habilidades dele. Era bom rapaz. Ia ser também um dos degraus por onde começaria a descer a dor do meu companheiro de carteira.
O pardal malhado de sardas saiu mais cedo. Não lhe deixaram continuar o curso. Foi logo, como era costume, para a tropa. Chamaram-lhe
furriel. Mandaram-no marchar para Goa.
Não vi, mas, pela certa, escondendo uma ou várias lágrimas ‒ porque no internato aprende- mos sofridamente a envergonhá-las ‒ por trás do sorriso saltitante, embarcou para o Oriente dos Albuquerques, e dos Castros, sem grande convencimento de, entre a epopeia de quinhen- tos e esta partida de agora, haver grande ou al- guma ligação. Ia, porque tinha de ir. Calhara-lhe em sorte. E foi então que uma nuvem lhe tapou a luz da estrela protectora. Chegou a Goa, e ainda não se tinha familiarizado com os nomes
    ramos, ainda, meninos ‒ eu um ano mais velho e mais espigado, ele pequenino ‒ quando nos conhe- cemos. Recordo-lhe o jeito traquina, alegre, sempre
bem-disposto, de sorriso fácil, pardalito a quem a vida cor- ria sem cautelas nem preocupações. A face cheia de sar- das. Irrequieto como todos os bichitos novos.
No ano seguinte fomos companheiros de carteira e, de- pois, no outro. No terceiro ano ficou para trás. um profes- sor meio louco e meio sádico reprovou a maior parte da turma. Tive sorte. Julgo que, como certos seres flexíveis, estreitos e quase impermeáveis, passei pelo meio dos pin- gos da chuva. Ele ficou. Ficou inexoravelmente para trás e isso traçou-lhe o destino.
Nos dois anos de alguma e, por vezes, pouca atenção ao falar dos mestres, gerou-se uma cumplicidade própria de quem se tem um ao outro para ajudar nos vendavais da ciência e, acima de tudo, nas tempestades das avaliações.
‒ Eh pá, a segunda como é que se faz? E a quinta? Passa essa merda, que não sei nada!
‒ Já vai, já vai. Toma lá e desenrasca-te. Inventa um pouco. Diz qualquer coisa, mas mete isto pelo meio!
  40 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho












































































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