Page 43 - Boletim Nº 254 da APE
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PALAVRAS SOLTAS
Do tempo, da morte
da imagem que julgamos nossa
Ernani Balsa
19600300
Estava um dia cinzento, nuvens carregadas, com o sol a romper pelas franjas de enormes formações escuras e pesadas. O local não lhe era estranho, apesar de lá ter estado poucas vezes. Apenas as necessárias. Sentia um misto de alívio e de culpa, de paz e de tristeza. Saiu do carro, abriu a bagageira e retirou o ramo de flores que destinara àquela romagem. Pedira, na florista, um ramo adequado à finalidade da urgência súbita que sentira ao tomar a decisão de lá ir...
O tempo que tinha disponível não era muito. Tinha na cabeça a pressão das várias tarefas com que se compromete- ra. Textos para acabar. Organização de eventos, não da sua componente logística, mas de preparação de inúmeros e pe- quenos detalhes que era preciso acautelar para que tudo saísse perfeito. Ainda ontem, a editora, empenhada na sua primeira publicação, a sair dentro de poucas semanas, lhe implorava que não se esquecesse de lhe enviar o texto com que se comprometera... vá lá... um daqueles textos teus... Deves ter alguns em carteira, não publicados ainda... um po- ema, não te esqueças... pedia a redactora, entusiasmada e vibrante, com o seu sorriso sempre presente... E ele, com- prometendo-se, descansando-as de que tudo seria envia- do... Não sabia ainda o que iria escrever ou que texto iria desencantar da sua gaveta virtual de escritos ainda não di- vulgados. Era sempre a mesma sensação. Não sabia escrever sem ser por impulso ou por pressão do tempo. às vezes, dava com ele a matutar por que razão não era como outros, que conseguiam escrever de uma forma organizada e com um plano de trabalho devidamente delineado... Com horário e rotinas bem pensadas e cumpridas. Talvez tal, consigo as- sim acontecesse, por não ser escritor, mas antes alguém que sentia a escrita como uma emanação natural e impulsiva da sua necessidade de pensar e com isso fazer a alquimia da comunicação com ele próprio e com os outros...
Fechou a bagageira, trancou o carro e dirigiu-se á porta do cemitério, empunhando as flores com que iria colorir algo parecido com saudade e tristeza. Tentou lembrar-se do local da campa, mas não foi fácil. Há anos que não voltara ali. A princípio, ainda fazia o esforço, sim, porque era mesmo um esforço, para lá ir e fazer uma rápida limpeza à campa, antes de depositar umas poucas flores sobre aquela pedra nua e fria. E ali ficava uns minutos, sem tomar verdadeira consciên- cia da sua razão de ali estar perante terra seca e lápides de despedida, rodeado de morte por todos os lados. Finalmen- te conseguiu identificar a campa, com ar abandonado, nem flores murchas, nem flores vivas, que ali não se dão com a morte como adubo e mais nada...
O tempo, porém, não o deixava de atormentar e sabia que tinha de cumprir com o prometido. O tempo, aliás, era o seu principal veículo de alimento da mente. Era uma neces- sidade absoluta, esta coisa de pensar. Pensar sempre e sem
limites. Pensar sobre si próprio. Pensar sobre os outros. Pen- sar como os outros pensariam de si, não propriamente o que pensariam de si, mas antes a modo como o fariam. Aquilo que os outros interpretariam do seu modo de ser, da sua postura perante a vida.
Nem sempre damos por isso, mas por vezes quedamo- -nos a olhar para dentro de nós próprios e nem sempre com- preendemos aquilo que vemos no nosso interior. Ao longo da nossa vida construímos uma imagem daquilo que julga- mos ser o que os outros vêm em nós e raramente nos ques- tionamos se esse é o retrato que impressionamos no julga- mento de quem nos vê apenas por fora e interpreta os nossos sentimentos, os nossos valores, os nossos defeitos e virtudes, apenas por aquilo que lhes damos a conhecer sem que os deixemos abordar-nos de outras formas mais precisas e mais eficientes.
Porque o conceito que nós fazemos de nós próprios é em muito condicionado pelo julgamento que fazemos daquilo que pensamos projectar nos outros, sendo que essa imagem
Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro | 41