Page 44 - Boletim Nº 254 da APE
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 PALAVRAS SOLTAS
Acordar
Ramiro Nolasco
19740268
Amanhecer abençoado,
água a correr e chilrear
brindam o menino que, acordado,
quer tudo menos acordar.
Antes disto, foi o grito,
soprado por quem lhe deu vida.
Avança o ponteiro aflito,
que o tempo não pode parar.
Entra ela, esbaforida,
quarto adentro como um tufão,
abrem-se as cortinas em par
e o Sol, sem hesitar,
beija tudo, até o chão.
– Vamos lá, seu mandrião!
Diz-lhe ela, decidida,
enquanto lhe dá um abanão.
Enterra-se o rosto na fronha
e, com ele, um gemido,
que esta coisa de fazer ronha
tem que ter algum sentido.
– Oh mãe, dói-me a cabeça!
Diz o puto, convencido
que, assim, talvez pareça
que está, mesmo, combalido.
– Anda lá! Dá cá a mão!
Vais ver que isso já passa!
Mal pôs os pés no chão,
foi levado de empurrão até à casa de banho. Lava cara como um gato,
veste-se ainda a dormir,
arrasta-se até à cozinha...
– Oh Pá! Aperta o sapato!
– Olha que vida a minha...
 é falseada por inúmeros factores, dos quais o menos grave, seja talvez, uma certa vaidade que nos serve de vitamina para nossa própria afirmação. Mas existem tantos outros que menospreza- mos e até desconhecemos, que na realidade, quando temos a rara percepção de nos analisarmos, verificamos o quão frágeis são as nossas verdades e quão limitadas as qualidades que cre- mos poder içar no mastro da nossa personalidade.
É então o momento atroz em que nos questionamos sobre todos e sobre tudo! questionamo-nos sobre a forma que temos utilizado para fazer passar a nossa mensagem e chegamos à conclusão que aquilo que realmente passámos, não corres- ponde àquilo que julgávamos ser correcto, mas antes àquilo que queríamos fosse perfeito para que o olhar dos outros nos julgasse ao mesmo nível que nós nos vínhamos julgando a nós próprios.
Não que o julgamento que, no fundo, fazemos daquilo que somos, seja muito diverso daquilo que realmente julgamos ser, mas o simples facto de deixarmos de acreditar naquilo que os outros pensam acerca de nós, abre-nos esta ferida incómoda e dolorosa de deixarmos de poder assentar no juízo dos outros, aquilo que sempre desejámos ser e que acreditámos que eles verdadeiramente viam em nós!
Esta dupla avaliação do nosso próprio ser e o facto do exa- me ao nosso eu interior diferir da imagem que aos outros é per- mitido ver de nós próprios, é o motivo primeiro de uma certa incerteza que me assalta e que eu quero compreender para além da dúvida que permanentemente me questiona. que an- dei eu a fazer todo este tempo, sem conseguir transmitir àque- les que considero amigos, todas as imperfeições, as dúvidas e as incertezas que em momentos de introspeção possa reconhe- cer no meu percurso!?...
E ali continuei, hirto e ausente. Dei conta, então, que o ramo de flores continuava nos meus braços e ali em baixo, estariam o meu pai e a minha mãe, ou então, a ideia que eu faria deles, sem saber o que fazer naquela postura de observador de um cenário de morte. A morte, aliás, nunca foi algo que me atraís- se, enquanto motivo de celebração ou de evocação, porque ce- lebrar a vida, faz todo o sentido. O contrário, não!... Porquê ce- lebrar a morte se esta não é mais do que a imperfeição da vida. E, dando-me conta ali, do meu papel, da minha figura perante a impossibilidade de ser testemunha da presença dos meus pais, ali naquele torrão de terra encimada por pedras cruas e frias, dei comigo a pensar o que faz alguém vivo a contemplar uma morte opaca e invisível?... Foi sempre uma questão que pus a mim próprio, sem conseguir qualquer justificação. Resta-nos, penso seu, as memórias e o pensamento. A ideia de que ali es- tará alguém, é uma imagem forçada que não me apela a nenhu- ma forma de comunicação. Apenas me faz pensar. Eu sei que há quem reze... Eu penso, apenas... Mas sinto-me desconfortável por não entender o objecto da morte e muito menos a sua evo- cação como limite da vida...É injusto e é triste!...
Pousei as flores na campa. Não pronunciei qualquer palavra. Balbuciei apenas um profundo silêncio e retirei-me. O tempo, lá fora, esperava por mim...
Aquele texto que me havia sido tão dramaticamente pedi- do, ia acontecer de certeza!... Estar-se vivo, tem destas coisas, tudo pode ser decidido e realizado em tempo útil, mesmo que no limite da sua contagem, desde que a vontade seja o fulcro do nosso querer!...
              42 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro























































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