Page 41 - Boletim Nº 254 da APE
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 maravilhosos dos nossos grandes mestres. Durante uma hora de aula, tínhamos sempre tempo para tudo. Para o de- ver e para algazarra. Ele queria brincar connosco, para que, assim, pudéssemos elaborar a falta de afecto que ele sabia pairar por aquelas cabeças; ora voava uma ponta de giz para alguém que ele topava que estava distraído, ora voava mes- mo o apagador, quando não era o ponteiro de madeira. Mas, depois, falávamos de outras coisas sobre o nosso mun- do particular lá de fora. Perguntava-nos se sabíamos porque é que eram sempre os mesmos clubes de futebol a ganhar os campeonatos, e, claro, ninguém sabia responder. Naque- le silêncio, gritava à nossa ignorância dizendo que a causa era o dinheiro. Com o dinheiro compravam-se os melhores jogadores e, assim, as restantes equipas do campeonato nunca conseguiam ganhar títulos. Ele via nisso uma grande injustiça. Era da Académica! Aliás, ele tinha uma cega preo- cupação com as desigualdades económicas no mundo, fos- sem elas culturais, financeiras, sociais ou pessoais. Gabava- -se de ter publicado livros e irritava-se com indignação de que ninguém os lia. O mundo além de injusto, era estúpido. O homem gregário era a pior espécie do planeta. Certo dia trouxe um exemplar para uma aula. A capa era bastante su- gestiva: um ânus com uma teia de aranha. quem não acer- tasse à sua pergunta do porquê daquela capa, levava com aquele calhamaço de economia na cabeça, como fúria da sua indignação, e, bem alto, dizia: Fome! Esta capa preten- dia dizer que aquele ânus já não evacuava há bastante tem- po, portanto era de alguém que estava a ser vítima da maior injustiça que a humanidade tinha criado a si própria.
Enterrado na cadeira da sua secretária, a mexer no taba- co, ia explicando baixinho a matéria ao mesmo tempo que enrolava os seus cigarros. Estava a experimentar fumar ta- baco de enrolar, pois, fumar, estava a tornar-se uma coisa
cara. Não se escondia em subterfúgios; a sua origem humil- de fazia dele um homem maior. Fumava nos intervalos das aulas, SG Filtro, sempre num passo acelerado. quando se ouvisse um pequeno barulho na sala de aula, o olhar certei- ro escolhia a vítima, que, ou respondia à pergunta ou, se estivesse distraído, sem que nunca magoasse ninguém, le- vava nas orelhas.
Para sermos homens diferentes dos outros, melhores que os outros, de barba rija de partir as lâminas de barbear, tínhamos que saber fazer as coisas sem nunca sermos apa- nhados, sem nunca darmos o flanco; tínhamos que ser lúci- dos, estar sempre presentes e ter sempre a resposta pronta antes que o que quer que fosse pudesse acontecer primeiro que a nossa reacção.
Certo dia, depois de uma aula, parou para acender um cigarro na parada de calçada da 2a Secção, quando uma car- rinha das obras, estacionada, arranca em marcha-a trás sem o ver, e embateu-lhe fortemente na cabeça, ficando estate- lado no chão. Logo ali, fui socorrê-lo, e prontamente vieram a ambulância e todos os que conseguiram. Tudo e todos éra- mos nada, para podermos fazer o tempo andar ao contrário. O acidente vinha-se a revelar grave. Tempos depois, soube- mos da sua morte.
Lembro-me de ficarmos chocados por termos perdido para sempre alguém que compreendia o nosso verdadeiro contexto dentro daquelas quatro paredes. um professor que desesperadamente queria passar-nos algo de impor- tante para as nossas vidas, um amigo que nos deixou um sorriso que transportava mais amor do que todas as pala- vras que nos haviam ensinado, um pai que segredou comi- go, e que, aqui, em mais um aniversário da nossa Escola, recordo com muita honra e saudade. Obrigado, Professor Boaventura de Sousa Santos.
EVOCAÇõES
   Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro | 39



























































































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