Page 40 - Boletim Nº 254 da APE
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 EVOCAÇõES
 Oq Professor “Arranca a Folha”
uando era garoto, tive um professor que me ensina- va coisas que não vinham nos livros. Era um homem franzino, de sobrancelhas carregadas a sombrea-
rem um rosto latino de poucos amigos, reguila, e, ao passar com o seu andar saltitante, coberto pelo seu capote preto, metia respeito, quando senão, medo. Apesar deste aparato veemente, de roupa escura, justa, de sapatos bicudos e poli- dos, gozava da fama de ser um senhor afável e brincalhão. Embora carregasse aquele olhar vincado pela indignidade de quem abomina a desordem deste mundo, tinha um sorriso cortês e encantador. Acima de tudo, gostava de nós, dos alu- nos do internato. Sabia que éramos os filhos das guerras co- loniais e, portanto, sabia bem o porquê de irmos ali parar. Muitos órfãos, outros abandonados pelos pais. Coitados des- ses pais, que, alguns, nunca tiveram a serenidade e o tempo de um abraço para viverem os seus filhos. E que falta, tanta falta, nos fazia esse conforto, o de recebermos um abraço de ternura, principalmente naqueles fins de tarde dos Domin- gos no regresso ao colégio. Ele sabia bem disso. Ele tinha o pressentimento das tempestades dessa nossa juventude naufragada. via-nos como pequenos grandes homens, de ca- rinhas pálidas como almas meio perdidas, ali sentados nas secretárias de madeira, tensos, depois do chefe de turma ter pedido autorização para podermos entrar na sala de aulas, com a tradicional continência militar na formatura do pelo- tão. Hoje, tenho a certeza que ele sentia por nós um misto de pena e ao mesmo tempo de estoicidade. queria ensinar-nos tudo o que lhe ia na alma. queria que soubéssemos o por- quê das coisas do dia-a-dia, do quotidiano inexplicável que nos envolvia. Não estava totalmente empenhado em ensi-
                  Da esquerda para a direita Professor Boaventura de Sousa Santos, Professor Ulisses Braga, Professor Salvador Martins e Professor Steigher Garção)
António Santos
19640022
nar-nos apenas os programas curriculares maçudos mas, es- sencialmente, em transmitir-nos a forma como devíamos olhar o mundo, quer para as suas injustiças, quer para as suas partes mais belas. Ele queria que nós adorássemos a vida. Ele adorava a vida, ao seu jeito, ao seu estilo, e à forma como a sua presença elegante se impunha onde quer que estivesse. Do nosso vínculo com ele, faziam parte as coisas mais belas da vida. Por vezes, juntinho a nós, como que se um de nós se tratasse, contava-nos anedotas e quadras po- pulares daquelas mais picantes e tantas outras histórias. umas de sentido especial que nos faziam abrir os olhos para a hostilidade da vida, outras, mais descontraídas, para nos arrancar uma boa gargalhada:
– “quanto mais a cabra levanta o rabo, mais o chibo en- terra o nabo!”
– “São Gonçalo de Amarante Rachador de pau de pinho Dai-me força no barbante Como ao porco no focinho” – “Ai, S. Gonçalo,
S. Gonçalo de Amarante, Casai-me que bem podeis, Pois já tenho teias de aranha No sítio que vós sabeis”
Sem nunca nos dizer verbalmente, até porque isso pode- ria ser coisa de “lingrinhas”, realmente, ele gostava muito de nós. Interagia, provocava, fazia-nos estar presentes, ensina- va-nos de verdade. Nós tínhamos-lhe um enorme respeito. Meio áspero, de propósito, quando detectava um erro na escrita do nosso sumário, que tinha que ter letras bem de- senhadas, alinhadas e sem borrões, ao apontar o erro com uma mão, dava-nos um tabefe de raspão com a outra mão, sem que tivéssemos tempo para nos defendermos, e dizia- -nos ao mesmo tempo que devíamos “pensar como se tivés- semos os tomates na testa!”, como que se todas as forças de um homem fossem investidas no pensar, sem desperdícios e sem quaisquer dúvidas e muito menos receios. Se cometês- semos um segundo erro, arrancava aquela folha, e obrigava- -nos a refazer todo o sumário. Havia aulas que eram só a escrever o sumário e pequenos ditados de escrita altamente laboriosa. Era um homem lúcido. A distracção para ele era sinónimo de burrice. Pouco importava o conteúdo progra- mático da matéria. Mais importante era a forma como re- flectíamos sobre todas as coisas das nossas vidas. Os pro- gramas de estudo, embora importantes, eram uma chatice. Essencial mesmo, era a forma como nos comportávamos na vida. Outras vezes, escrevíamos longos ditados de textos
38 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro






















































































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