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EvOCAÇõES
CONTINUAÇÃO
-costas que nunca o largava. Era giro ver aquele matulão ao pé do com o foco, uns olhos que lhe pareceram ser de um felino grande que
pequeno Alferes. andaria na lixeira uns cem metros à frente e fora da vedação do arame
O Capitão tinha por aqueles alferes, grande consideração. Como farpado e correu a chamar o seu comandante. Este pegou na mauser e
oficial do quadro formado na Escola do Exército, apesar de tropa de não foi de meias medidas, Pam! A barulheira foi tal que o comandante
intendência, tinha tido toda a instrução de combate e aulas de tática do Batalhão acordou espavorido e apareceu em cuecas e de botas
de guerra de guerrilha pois, naquele tipo de guerra, as instalações eram desapertadas, de G3 na mão, pensando tratar-se de um dos muitos
defendidas pelas tropas que as ocupavam e nas deslocações estavam ataques de que eram alvo. Claro que o Capitão ouviu o raspanete da
sempre por sua conta. Tinha escolhido aquela profissão e fazer a ordem e foi proibido de atirar aos bichos dentro do estacionamento.
guerra pelo seu País era o seu dever. Não que concordasse muito com Paciência, comprou em Luanda uma calibre 22 que não fazia barulho
tudo o que se passava. Teria talvez havido outra forma de resolver as nenhum e era bem certeira. Para cúmulo, não acertara na onça, se por
coisas. Deixou-se chegar a situação a um ponto em que tudo estalou. acaso de onça se tratava.
Agora era preciso defender as populações e tentar que a situação se- Toda a rapaziada riu a bom rir imaginando o comandante de Bata-
renasse. Mas na África já há muito que outros países tinham chegado lhão em cuecas, de botas desapertadas e G3 na mão.
à conclusão que era preciso auto determinar as populações para futu- A tarde passou-se a visitar as parcas instalações da unidade e os
ras independências. Muitas até já se tinham dado, só que, lá no puto, dois capitães passaram algum tempo no gabinete do comando onde o
o governo era ditatorial e não parecia que o chefe máximo estivesse comandante de companhia explicitou ao seu camarada qual era a sua
muito interessado em conversações. Paciência. Era andar para a fren- zona de acção, qual o tipo de operações que normalmente executava,
te e aguentar. Mas aqueles oficiais milicianos? Como aceitavam tudo onde se encontrava o local onde o inimigo fazia as lavras e montava
aquilo? Na maioria das vezes viam os estudos interrompidos ou as cabanas. De tempos a tempos ia-se até lá e destruía-se tudo. Em algu-
carreiras cortadas para cumprirem o serviço militar e acabavam arras- mas das vezes davam-se recontros com troca de tiros. O Capitão
tados para longe de casa, em terras que pouco lhes diziam e em aproveitou para solicitar autorização para nessa noite ir à caça com um
guerras em que não acreditavam. Mas o certo era que a grande maio- dos Alferes. Estabeleceu-se na carta qual o itinerário que teriam de
ria cumpria e bem a sua missão com grande espírito de sacrifício e seguir e qual o pessoal que utilizariam.
bastante profissionalismo. Tinham sido quase todos eles, ensinados e Ao jantar, o alferes caçador, estabeleceu o resto das regras e man-
liderados por oficiais dos quadros permanentes que agora eram os dou preparar o pessoal que os acompanharia. Iria também com eles o
seus comandantes que com eles contavam para o cumprimento das Alferes dos Lobinhos, que não queria perder pitada e, só não iam todos
mais variadas missões. porque era preciso manter o serviço na unidade. O Capitão comandan-
A viagem decorreu sem incidentes. Mais uma vez a tradição se te recusou-se, primeiro pelo seu estômago que o atormentava, mas
cumpria. Onde ia o Capitão da Intendência ninguém interferia. Chegaram também por não ser grande adepto da modalidade.
à hora do almoço e a mesa já estava preparada para os receber. Nestas Arranjados os farnéis e equipadas as viaturas, um jeep e um unimog
companhias era sempre uma festa receber gente de fora. Na maioria dos de apoio com uma guarnição de dez homens armados e equipados.
dias cumpria-se a rotina sem ver ninguém. Chegar o pelotão da CCS No jeep seguiu o condutor, o Capitão convidado ao lado e atrás o
do Batalhão era uma festa e receber o Capitão da Intendência era uma Alferes “Lobão” com um cabo atirador encarregado da metralhadora
honra. O comandante da companhia era um capitão mais antigo e “Dreyse” montada num suporte improvisado com um tubo de água.
bastante mais velho. Sofria do estômago e não melhorara nada a comer Fizeram-se muitos quilómetros em que só se ouvia o ronronar dos
muitas vezes rações de combate durante demasiado tempo. Ficou feliz motores. O pouco que se falava era em surdina. O Cabo metralhador
por ter lá um camarada da sua patente com quem poderia dialogar um também farolinava mas nada se via. O Alferes caçador estava desolado,
pouco. Já se conheciam das poucas vezes que o mesmo tinha ido a tanta caça que se via normalmente por ali e logo naquela noite nada
Nambo num ou outro reabastecimento, mas não tinham tido tempo para aparecia. Parecia impossível. O Capitão sorria e tentava sossegar o
se conhecerem bem. Agora poderiam recuperar o tempo perdido. rapaz.
Lavaram-se um pouco e despiram os casacos camuflados pejados – Deixe lá. Estou farto de caçar e também de ter dias e noites
da sujidade provocada pelo pó das picadas. O calor fazia-se sentir e à semelhantes, isto nem sempre dá. O termos saído e vindo para o mato
mesa estava-se muito bem só com as camisas de manga curta. A à noite, já foi bom.
messe da companhia era na varanda da casa, uma antiga habitação da Bastantes horas depois e já de volta à unidade e a poucos quiló-
fazenda de café abandonada há dois anos aquando dos primeiros metros de distância, o farolinador vislumbrou uns olhos ao longe. Pelo
acontecimentos dos dembos. Três mesas de madeira com bancos movimento parecia um felino, mas era difícil ter certezas devido à ve-
corridos, uma para oficiais e sargentos e as outras, bem maiores, para getação intensa. O Capitão preparou a mauser e mandou parar a viatu-
as praças. O facto de as praças comerem perto dos quadros fazia com ra mantendo o motor a trabalhar. O bicho tão depressa mostrava os
que o comportamento à mesa fosse um pouco mais comedido do que olhos como os escondia baixando a cabeça. O Capitão saiu do jeep e
normalmente sucedia quando o faziam longe e à solta. esperou. Quando os olhos se fixaram, apontou e atirou. A distância era
Falou-se de tudo e contaram-se montes de histórias. O interesse grande, talvez uns cem metros. Os olhos apagaram-se de todo, o bicho
do Capitão pela caça veio há baila referindo o comandante da companhia ou fugira ou morrera. O Alferes caçador resolveu ir ver. O Capitão re-
que já soubera da fama do Capitão da Intendência. Todos se referiram comendou-lhe cuidado e que devia levar uma caçadeira com zagalotes.
ao episódio do tiro à onça e o Capitão não teve outro remédio senão É a arma ideal para travar uma bicheza que possa atacar de ferida. Em
contar mais uma vez a malfadada cena. Um dos seus soldados que último caso, e à queima-roupa, puxam-se os dois gatilhos. Trava qual-
estava com um companheiro na guarita de defesa da área, visualizou, quer investida.
BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO 5