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EVOcAÇÕEs











                                  Tempo de Memória


           FERNANDO S. CRISTO
           19550373




               o ler no livro “100 anos 100 Escritos”, o depoimento   mana, com estudo suplementar ou ao Domingo, Guarda
           Ado Fernando Pires, 19550275, não posso deixar de   de Honra à Bandeira Nacional. Mais, praticamente e nes-
           recordar  com  algum  pormenor,  ainda  que  resumido,  o   tas idades, todos teriam os seus namoricos. Fins-de-sema-
           episódio no qual, ele, foi o protagonista, com o professor   na à «Cardoso Lopes» significava dizer Adeus à miúda…
           da disciplina Térmica de Rádio/ Comunicações – sinto-me   oh! Coisa dolorosa…
           «autorizado», já que o Fernando Pires faz o convite a que,   Passados 51 anos, lembro a determinação e coragem
           alguém dessa turma, fizesse o relato do que se passou –   com que o Fernando Pires reagiu contra os métodos do
           pois  bem,  eu  sou  dessa  turma,  companheiro  do  275,   professor – o Fernando foi enérgico e correcto.
           «Ponta-de-lança»  por  alcunha  –  é  o  meu  testemunho  e   A turma ficou calada e estupefacta, pois numa época
           ninguém me pediu, apenas para que conste.          como aquela, num ambiente militar, aquele rapaz arriscou
              Decorria o ano lectivo 1960/61, 4.º ano de Rádio. As   em nome de todos.
           nossas idades rondavam entre os 17/19 anos, ou seja, todos   O  professor  ouviu  com
           nós já fazia-mos a barba… Um ano lectivo mais e seriamos   calma, interessado nas nossas
           estagiários.                                       «dores» e naquele rapaz que
              Naquela época, jovens, tinham boas condições físicas,   o  chamava  a  atenção  e  à
           como  tal,  bons  ouvidos,  mas  a  boca  «amordaçada».  O   realidade. O professor ainda
           ruído que vinha do exterior dava para entender que algo   tentou argumentar, mas pe-
           se estava a passar em terras além-mar e não só.    rante os motivos e os factos
              Entre 1960/61 acontecimento políticos sucedem-se, é   apresentados pelo Fernando
           difícil  esconder  ou  calar,  começa  o  sussurro.  O  navio/   Pires,  deve  ter  sentido  que
           paquete Santa Maria, é tomado no mar das Caraíbas por   algo  estava  mal. Terminada
           um comando oposicionista ao regime então vigente em   a aula, o diálogo (não discus-
           Portugal – pessoas são presas, detidas, outras refugiadas, e   são) continuou entre o pro-
           alguns Oficiais do Exército professores do Pilão – começa   fessor  e  o  Fernando,  muito
           a guerra em África. A reminiscência de “para Angola ra-  para além da hora e já sem
           pidamente e em força”, complementa-se com o “Adeus até   a nossa presença. Regressa-
           ao meu regresso” – Todos nós sabíamos qual o nosso des-  mos à Primeira Secção.  Em baixo (Fernando Pires
           tino, estagiários/finalistas em 1961/62.              Quem convenceu quem,   19550275) a seguir (Gilberto
              As comunicações com sinais de fumo já há muito tem-  não sei. Todos sentiram que   Albuquerque 19540083), a
                                                                                          seguir (Fernando Cristo
           po tinham acabado, nós, rapazes homens, somos os «heróis»   a  atitude  do  professor  se   19550373) em cima a contar
           da válvula, dos electrões saltitantes em esquemas de linhas   modificou e para melhor e   da esquerda (Luís Amaral
           e circuitos «chatos» como tudo. Mas mais «chato» e dema-  isso reflectiu-se no aprovei-  19550354, José Lencastre
           siado «ditador» era o professor Tenente Cardoso Lopes.  tamento final – ainda hoje,   19540319, Joaquim Mexia
              Tendo em conta os tempos de hoje, com iphone, ipad,   corrido  o  tempo,  tenho  na   19560021)
           ipod, este professor, naquele tempo, era o nosso «iporra»!!...   memória a «malta» daquela turma, estou certo que não
           Nunca reparou que se encontrava a lidar com rapazes que   esqueceram aquele dia e a tua firmeza.
           já faziam a barba, jovens que em breve enfrentariam te-  Mas, oh Ponta-de-lança, naquele momento pensei para
           atros de guerra.                                   mim – o gajo endoidou, saltou-lhe a «tampa» – está feito!!
              Tinha o dito professor, como prática fazer consecutivas   O «puto», rapaz homem, que já fazia a barba, teve de
           chamadas ao quadro, situação para nós enervante em que   uma  forma  directa  e  claríssima,  o  direito  à  indignação.
           logo à primeira asneira redundava num vexame de ter de   Com letra grande, tu foste, VERTICAL – como entendo
           calar e comer. Só pelos nervos um aluno «espalhava-se».   e respeito os jovens de hoje, que lutam por esse direito
           Seguia-se  a  «batata»,  ou  seja,  zero  valores  na  caderneta   quando  o  seu  país  que  já  não  tem  guerras  longínquas,
           escolar, assim como no boletim diário das aulas – «Batatas»   balança entre desemprego e desespero. Eu, que já fui jovem,
           intragáveis que muitas vezes nos arruinava os fins-de-se-  que vivi guerras longínquas, sinto-me hoje devastado.



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