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cultura e coNhecimeNto
rUi cABrAL TeLo
1948.0265
Vamos falar de Bailado
A Sagração da Primavera
evidenciando a procura do acasalamento por parte dos
machos, mostrando o dengoso das fêmeas, fugidias mas
interessadas nos enlaces que se prevêem a todo o momen-
to. Os movimentos dos bailarinos são ao mesmo tempo
selvagens e muito eróticos, acompanhados pela música
com precursão tonitruante que empolga e quase assusta.
Normalmente vemos este bailado numa cenografia de
floresta enquadrando as personagens ligeiramente vestidas
com peles, como se de animais se tratasse.
Fiódorovitch Ígor Stravinski disse um dia: “Sonhei com Claro que um espectáculo destes, para as mentalidades
um grande ritual pagão! Tive uma soberba visão comple- de então, capazes das piores torpezas desde que em segre-
ta dos mais inusitados efeitos sonoros indefiníveis”. do, mas enganosamente pudicas, quando se apresentavam
Nasceu deste sonho A sagração da Primavera “Le Sacre em sociedade, causou enorme confusão e burburinho não
du Printemps”, a música do bailado mais erótico que já vi. aceitando e repudiando a obra, o que causou grande frus-
Esta música alterou todas as regras da harmonia que tração ao autor.
até ali eram usuais; na orquestração, nos timbres, na estru- Do mesmo compositor temos também excelentes obras
tura rítmica, na forma, no uso de dissonâncias, na aplicação para bailados tais como: O Pássaro de Fogo e Petruska,
exagerada do numero de instrumentos usados em cada estas anteriores à Sagração e As Bodas de uns anos após,
naipe, principalmente nos metais, etc. Só instrumentos de sendo qualquer delas também modernistas, mas excelentes
sopro são usados trinta e oito dos quais oito trompas. obras muito agradáveis de ver e escutar. As encenações
Também o uso exagerado da precursão sobrepondo-se à destes bailados são normalmente apresentadas com movi-
melodia, causou sensação na época e não foi muito apre- mentos considerados pouco ortodoxos e, como tal, muito
ciada pelo público seráfico e conservador. Por outro lado, diferenciados dos aplicados em bailados clássicos.
a natureza erótica dos gestos dos bailarinos, na excepcional A Sagração da Primavera é um espectáculo de excepção
coreografia de Nijinsky, extraordinário bailarino que, no que merece ser visto. Se ainda não viram, vão ver um dia
seu papel de coreógrafo, conseguiu conciliar, nos intérpre- e depois digam de vossa justiça.
tes, o aspecto rústico com o erotismo dos movimentos,
causou enorme escândalo no público que assistiu à estreia Nota: Stravinsky viveu de 1882 a 1971
em Paris em 1913. Hoje é considerada uma das músicas
mais influentes do progresso musical e é também uma das
mais reproduzidas e apresentadas em todo o mundo.
O ouvinte espectador, logo de início, sente-se peque-
nino e amachucado pela imponência do som e do espec-
táculo. É uma obra empolgante que marca o início do
modernismo.
Stravinski emigrou da Rússia, primeiro para a Suíça e
mais tarde para Paris e depois para os Estados Unidos onde
se naturalizou. Ainda em França conheceu a também
modernista Coco Chanel, no apogeu da sua carreira de
estilista, com quem manteve um caso de amor, já objecto
de um filme, complicando a sua vivência com a mulher e
os filhos.
Este bailado já teve inúmeras encenações, mas todas
elas põem em evidência os ancestrais ritos primaveris,
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