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BOLETIM APE | OUT/DEZ 2023
PALAVRAS SOLTAS
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uem me conhece sabe bem da paixão que tenho por
animais, especialmente por gatos. Por isso não é de
estranhar que, quando vejo seja o que for relacionado
com “gatos”, fique de orelhas no ar e sempre que posso,
lá vai alguma coisa parar ao cesto de compras. Como
também gosto muito de ler, e saber mais sobre gatos, o seu
comportamento e reações perante situações adversas ou
até doenças, nas livrarias os meus olhos fogem sempre para
os livros que tenham “gato” na capa, sejam figuras ou títulos
que incluem estes felinos. Tenho os mais variados livros de
gatos, e, outro dia, houve um título que me saltou à vista e
não resisti a comprá-lo: “E se os gatos desaparecessem do
mundo” … Claro que o comprei e comecei a ler de imediato.
Curiosamente, pela leitura das primeiras folhas, verifiquei
que o livro não era sobre gatos, mas sim a história de um
jovem, dono de um gato, a quem lhe fora diagnosticada uma
doença terminal, e ao chegar a casa desabafou com aquele
pequeno ser, com quem partilhava a casa e as suas emoções,
o seu gato de nome “Repolho”! Fiquei impressionada e ao
mesmo tempo emocionada, pois a proximidade da morte,
deixa-me no mínimo sem palavras e com um aperto no
coração. Não percebi, por este início do livro, como se iria
relacionar o seu conteúdo com o título do livro. Mas a leitura
continuou e logo de seguida percebi todo o enredo.
Este jovem que vivia sozinho com o seu gato, embrenhado
nos seus tristes pensamentos, apercebe-se que alguém mais
está naquela casa e fica assustado. Perplexo, pergunta quem
é o intruso, e, para seu espanto, dá de caras com o diabo…
Ora este personagem apenas pretende dar-lhe
dias de vida com uma condição… por cada dia de vida
“oferecido” ele faria desaparecer algo. Esta “coisa” que
faria desaparecer, não o afectaria apenas a ele, mas ao
mundo inteiro. E começa a trama… E se ( ) desaparecesse
do mundo?
Deixei o livro de parte e pus-me a pensar: de que estaria
eu disposta a abdicar (com a consciência de que não era
só “EU”) para ter mais um dia de vida??? Este pensamento
ficou a pairar na minha cabeça e fez-me pensar em tudo
aquilo que eu tinha e gostava de ter e que teria de deixar
de ter…. Será que os bens materiais, e não só, são mais
importantes que viver um dia mais??? Podem ser ou não
importantes para mim, mas, e para outros? Como posso
resolver esta equação apenas centrada em mim?
Voltei ao livro, e capítulo a capítulo o diabo vai colocando
opções ao jovem que fica também com as mesmas dúvidas
que eu… Que tal fazer desaparecer o chocolate? Ou os
relógios? Ou o cinema, a cor, o telemóvel? Enfim, qualquer
“coisa”, e por que não os gatos?
Não vou aqui desvendar o que desaparece, de que
forma e quais as consequências, mas uma coisa é certa
a escolha não foi fácil e a conclusão a que chego é que
não me passaria pela cabeça fazer desaparecer fosse o
que fosse! Tudo existe por alguma razão (e não vou falar
de sentimentos ou comportamentos), e por isso, tudo é
necessário e faz falta a alguém.
Então e a continuidade da minha existência? Não sou
altruísta, mas também não sou assim tão
egoísta a ponto de me impor perante tudo
e todos. Talvez pelo meu egoísmo eu, se
soubesse que o fim da minha vida estivesse
próximo, queria que fosse agora, pois a
incerteza (quase certa) de ser hoje, amanhã
ou daqui a x dias seria angustiante …
Mesmo sem qualquer prenúncio de
morte, sabemos que a qualquer momento
podemos sucumbir, mas isso é certo e sabido
desde o nosso nascimento e por isso não se
pensa a cada instante. Apenas vivemos com
a vontade de “viver plenamente” cada dia,
cada hora, cada minuto … o resto logo se vê!
O poema de Alberto Caeiro “Quando vier
a Primavera” expressa exactamente o meu
sentir: “Quando vier a primavera, Se eu já
estiver morto, As flores florirão da mesma
maneira E as árvores não serão menos verdes
que na primavera passada. A realidade não
precisa de mim. (...) Gosto que tudo seja real
e que tudo esteja certo; E gosto porque assim
seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso,
se morrer agora, morro contente, Porque,
tudo é real e tudo está certo.(...)”
E se…Ana Paula
Oliveira
19781097












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