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PALAVRAS SOLTAS 45
BOLETIM APE | OUT/DEZ 2023
A Lua já testemunha há algum tempo o cerimonial do
Sol a abandonar o palco que tão bem conhece e que
sempre lhe pertencerá. Ela prepara-se, humilde e
determinadamente, para dirigir a noite como Maestro que
dirige os músicos de uma Orquestra. Ela conhece de cor as
partituras da peça que vai ser tocada.
Aquele canto da praia, ao pé das rochas, vai enchendo-
se de jovens que trazem mochilas e violas e que se juntam
aos montes trauteando poderosas canções de escravos e
marinheiros; canções esquecidas no tempo e relembradas
pela irreverência de quem não gosta do que é gosto...
A alegria não lhes falta; cantam com toda a garra que o
coração lhes permite e aquecem-se com o calor ciciado
pelos troncos, - que se vão queimando, enquanto prestam
um derradeiro serviço aos velhos definhados do futuro.
Nessa noite festejam um dia especial que seguramente
não seria ignorado por quem se perfilasse, atentamente,
do rochedo que domina a praia...mas as ondas, nas suas
pancadas na areia, vão quebrando as músicas, reduzindo-
as a meras notas.
Lá longe, lá muito longe, na linha do horizonte, quando
a noite já cabeceava de cansaço, por detrás de uns fiapos
de algodão negro, começo a vislumbrar uma claridade
envergonhada que, a favor, pronuncia a luz de um novo
início. Um início de outrora, um início de hoje, um início
de sempre, em suma, omnipresente, pelo menos até aos
fins do Mundo... é a manhã de todos os dias do passado e
que hoje, a cada segundo, é um momento de eternidade,
é uma conquista ao futuro...
Quando me descuido já é dia. Um dia como tantos
outros: indiferente às alegrias e aos fracassos, às misérias
e às glórias, às loucuras e à sanidade daqueles que
acordaram prontos a percorrer mais um troço do Caminho.
Na praia, onde estou, testemunho, com o vento, a
luta de dois rivais: a terra e o mar. Dizer luta talvez seja
exagerado: a brincadeira de duas crianças, ou melhor,
e talvez seja mais adequado dizer, a brincadeira de dois
adultos que sabem ser crianças.
O mar, ao se aproximar, ergue-se e engalana-se de
brocados de algodão branco para beijar esses pedaços
de terra que se fizeram areia e ali se esvai em sangue,
serenamente, de um cansaço longínquo e perde a sua
identidade; a areia, essa, por sua vez, cheia de vaidade e
dengue, torna-se lustrosa e recupera a generosidade da
adolescência, tudo esconde e oferece ao mar.
O vento, esse indómito arauto de quantas novas
já adivinhadas pelos velhos pescadores, com dias de
avanço, vai lançando a areia sobre os sonhos nocturnos
da praia e vai escondendo-os: pesadelos que provocam
gritos lancinantes às crianças de colo; sonhos de sons de
gemidos de viola que imitam a dor e o prazer de ser; sons
de cantares de esperança de jovens resolutos e corajosos
que querem descobrir, não importa as canseiras, o que
esconde o horizonte. Esse vento, meu companheiro,
é determinado e persistente e aos poucos faz a praia
esquecer o que foi vincado na sua memória, pelas horas
frescas da noite.
Da noite para o diaPedro Amiguinho
19770381
Foto George Desipris





































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