Page 7 - Boletim numero 260 da APE
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 BOLETIM APE | JAN/MAR 2021
CRÓNICAS
 copos que colocou na mesinha que estava à frente do sofá. – Lembra-se desta, meu pai? (Perguntou-lhe, enquanto
lhe passava a garrafa para as mãos.)
– Parece uma das nossas, filho! (e afastou-a para que os
olhos conseguissem ler o rótulo.)
– Ah... Já me lembro! Como é que tu ainda tens isto? Guar-
daste-a? Lembro-me bem! Foi quando tu fizeste o exame da 4a classe e me pediste para ser tu a escrever os rótulos. Como é que a guardaste, que eu nem sequer dei por isso?
– Não, meu pai, não guardei. Foi quando o fomos buscar a casa para vir para aqui que, ao arrumar as coisas da mãe, dei com ela escondida no armário da roupa.
– Ah, a minha Olinda, sempre a mesma... que saudade! Ela bem te mimava. (e levou a garrafa ao peito e abraçou-a, como se, naquele instante, pudesse ter um segundo de quem já ti- nha partido.)
– Vamos lá, meu pai... hoje, vamos abri-la... temos motivo para isso e, se não o fizermos, um dia destes, alguém que não lhe sabe dar o valor, vai bebê-la. (e concordaram...)
Copos cheios, tragos demorados, entremeados com con- versas de momentos passados, todos eles gratos, fartos em gargalhadas e saudade, com vida eterna na vida de quem os viveu. Pelo meio, uma estaca; a notícia de que a Inês iria para o Porto, para a faculdade...
– Para tão longe? Ela é tão novinha! E tu vais deixá-la ir? Coitadinha da menina... É só por uns dias, não é filho? Oh fi- lho... não deixes a menina trabalhar... ela que estude até ser doutora... Oh filho, se é por causa do dinheiro, podes ficar com a minha reforma, é pouco, bem sei, mas sempre dá uma ajuda e tu dás-me tecto e comida... não preciso dele.
Pobre José... agora, que tinha ganho a coragem de come- çar a falar no assunto, engolia, em silêncios dilacerados, cada exclamação do pai.
– Volto já! (levantou-se, à pressa, e foi esconder as lágri- mas para a cozinha, no regaço de um abraço de quem acredi- tava ter solução para tudo.)
– Não consigo, mulher! Não consigo! Devias ter ouvido o que ele me acabou de dizer.
E ficou, ali, no abraço que o acalmou, mas que não lhe dis- se nada que o deixasse em paz. Ainda tentou:
– Tem mesmo de ser? Não há outra solução?
E voltou à sala, convicto de que a ausência de resposta era prenúncio daquilo que não queria ouvir.
– Vamos lá! Copo vazio? Temos que comemorar o facto da Ti Céu o ter reconhecido.
– Oh filho, cuidado, olha que ainda a agarramos.
– Deixe lá... tristezas não pagam dívidas e nós não vamos a lado nenhum, podemos ficar aqui a curti-la.
– Já agora, a Inês não vai trabalhar... vai estudar para ser doutora, mas vai ter que ficar por lá uns anos. Vir-nos-á visitar todos os meses. (e o velho suspirou.)
– Meninos, vamos para a mesa! (gritou ela, lá de dentro.)
Toalha de Domingo, bordada por mãos antigas, pratos de barro pintados com travessas a condizer que, como os copos e os talheres, saíram do baú da Ti Olinda, como era hábito no tempo em que ela por cá andava, quando era de festa que se tratava. No meio, a dita garrafa, ladeada por dois montes fu- megantes: um de batatas, couves, um nabo e duas cenouras, o outro, de carnes e enchidos. Nas pontas da mesa, o Joaquim e o José, o Ricardo, de costas para a parede, colado ao avô, a preencher o lugar habitual da avó quando lá iam almoçar e elas do outro lado, lugar destinado às mulheres, por ser mais fácil acederem às eventuais coisas que tivessem de ir buscar.
– Eh lá, meu sogro. Está todo rosadinho! O senhor e o Zé!
E o Joaquim, sem nada dizer, trocou olhares comprometi- dos com o filho... e sorrisos, para selar o pacto de silêncio.
Pratos cheios, uns de escolhas meticulosas, outros com tudo, que aqueles dois eram de boa boca, vinho servido e pro- vado, comentado com regozijo e a conversa, malfadada, tão pouco desejada por todos.
Não obstante o supracitado, pleno de vontade de conven- cer nem que fosse que aquele seria o mal menor, Joaquim ainda perguntou:
– Então e a Maria do Céu, coitadinha? Quem a irá visitar?
– O senhor, meu sogro, como sempre fez. Nós iremos bus- cá-lo para o fazer. E fique descansado, que nós levamos as pêras.
– Muito bem. Pronto, estou velho... um homem não vale nada. (e pousou o olhar no prato.)
José, conhecedor dos silêncios do pai, engoliu em seco e com a voz trémula, tentou passar-lhe a paz que não sentia:
– Calma! E se antes de tomar uma decisão, fôssemos visi- tar a Casa dos Avós? Está lá muita rapaziada do seu tempo, meu pai. Se quiser, até lá pode ficar uma manhã ou uma tarde, só para ver se gosta e, então, se quiser, vai para lá.
– Então, e vocês? Quando é que vos vejo? Não tenho mais ninguém.
– Oh avô! Tu vais ter-nos sempre. Vamos visitar-te, vens passar os fins-de-semana connosco e, pelo meio, estás com os teus amigos, com um médico ali ao lado se precisares... Vais ver, só tens a ganhar com isso. (disse o Ricardo.)
– Muito bem. Vamos ligar para lá e saber quando é que o senhor Joaquim pode visitar os amigos. (disse a matriarca, en- quanto foi buscar a sobremesa.)
– Olhe, veja lá... bem sei que não é o arroz doce da minha sogra, mas olhe que eu esmerei-me.
Na semana seguinte, num dia de semana, para que esti- vessem lá todos, o Joaquim foi visitar os amigos de infância. Do grupo todo, os que restavam, estavam ali... alguns sujei- tos à doença da Maria do Céu, outros, já convertidos à força do ter de ser e na inocência de pensarem que o que faziam seria o melhor para o Joaquim, proporcionaram-lhe um dia de sonho que só se repetiu meses depois, quando o Tobias, ou- tro menino da sua safra, foi lá passar o dia para ver como era e, como o Joaquim, também decidiu ficar.
No Inverno da vida, chegou o Inverno e, com ele, outra doença... a nova doença da moda, inventada pelo Diabo, com certeza... e as portas fecharam, as visitas terminaram, os fins- -de-semana passaram a ser passados ali, no local que lhe ti- nham garantido que não seria uma prisão. A Maria do Céu dei- xou de ficar à distância da vontade de a ver e os homens, com estas modernices, inventaram encontros pela televisão, como se estes pudessem satisfazer o desejo de lhes tocar. A família começou a aparecer mais vezes, do outro lado do vidro, até a Inês, que estava no Porto e, de um momento para o outro, fi- cou tão próxima quanto os outros. O José passou a vir todos os dias, com sorrisos emoldurados por aquele écran e com conversas de esperança e convicções de que um dia isto iria acabar.... e mais... com promessas de futuro e passeios... e tempo para gastar com o Joaquim... e beijos, tantos, dados à distância, que não se conseguiam sobrepor a um, único, dado de verdade... e o Joaquim, do tempo de espera pela próxima videochamada, fez pensar... pensar no tempo que lhe resta, incerto no dia da partida e da certeza que os beijos e os abra- ços prometidos chegariam a tempo de serem dados e apren- deu a esboçar sorrisos emoldurados, carregados de esperança simulada, fingindo acreditar, para que o filho acreditasse que ele acreditava; porque pai que é pai, é pai até ao fim.
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