Page 6 - Boletim numero 260 da APE
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 CRÓNICAS BOLETIM APE | JAN/MAR 2021 Sorrisos emoldurados
   Outono da vida... ou Inverno, sabemos lá... o futuro pode-nos pregar a partida de querer ficar mais curto. Tinham-lhe prometido que seria melhor para ele; du-
rante o dia, teria amigos com quem falar e, quem sabe, jogar uma sueca, damas ou, até, todos os campeonatos de dominó adiados durante décadas pela necessidade de pôr comida na mesa. Apesar da desconfiança, por tudo aquilo que ouvia di- zer, garantiram-lhe que não era uma prisão, que poderia sair quando quisesse, bastava telefonar para que o fossem buscar e, além disso, ficaria o aviso, para não lhe dizerem “ autoriza- ção”, um homem daqueles aceitava lá ter que ser autorizado pela criança que criou, que, quando o desejasse, poderia ir até ao Café do Xico, ali a dois passos, tomar uma bica ou lavar a alma com uma cervejinha.
Há seis meses, tinha-lhe partido a companheira duma vida, quem diria... parecia estar tão bem... a parte de si que sabia fazer tudo o que era necessário para viver, que a ele, por ser o único rapaz dos seis filhos que os pais tiveram, foram-lhe pou- padas todas as tarefas do-
mésticas... nem um botão
sabia pregar. Das meninas,
já só restava uma, a Maria
do Céu, a primogénita, coi-
tadinha... estava abandona-
da lá para o Asilo... criou-os
todos e, depois, tratou dos
pais... nem casou e, de fi-
lhos, nada... adoptou os so-
brinhos e, agora, uma mu-
lher daquelas, estava para
ali, com uma dessas doen-
ças da moda... que nem a
deixa reconhecer as pes-
soas nem sequer as pêras de
Inverno que ela se pelava
para comer e que ele, seu
menino adorado, virava o
mundo para as conseguir,
ainda que isso lhe trouxesse
a angústia de, de cada vez que a visitava, lhe ter de explicar o que era aquilo e do tanto que ela gostava delas. Ficava sem chão... sem saber como lhe provar o seu amor... e, agora, nem a Olinda cá estava para lhe secar alguma lágrima rebelde, o abanar e lhe dizer: – Oh homem, deixa lá isso, Deus, nosso senhor, vê tudo e, quando ela lá chegar acima, vai saber que tu sempre a amaste. Valeu-lhe a última vez que a visitou, já pelas mãos de um neto, o sorriso e a repreensão:
– Oh Joaquim, meu rico menino, só cheiras a fumeiro, fi- lho. Vê lá... não adormeças à lareira!
– A mana já te vai deitar.
E voltou para o mundo dela, o mundo dos olhos aluados, distantes de tudo o que tinha vivido. E ele, ficou, ali, no silên- cio dos olhos encharcados e do sorriso do neto, que logo re- torquiu:
– Oh avô... não fiques assim... coitadinha, está toda bara- lhada.
E o Joaquim limpou as lágrimas à manga do casaco, levan- tou-se, deu um beijo na testa da irmã e partiu e disse... e foi dizendo por todo o caminho de regresso a casa:
– Ela reconheceu-me. Lembrou-se de mim!
Mal sabia ele que a alegria que sentia iria ditar a mudança da sua vida.
Ao chegarem a casa, o Ricardo, preocupado, contou o que se tinha passado aos pais e argumentou:
– O avô precisa de uma ajuda mais especializada, ter sem- pre alguém por perto e agora, que a mana vai para a faculda- de, comigo fora e vocês a trabalhar, seria sensato procurar um Lar.
A notícia caíra como uma pedra no estômago de José, que nunca quis aceitar que o pai acabasse os dias noutro lugar que não fosse ali, ainda que a esposa o tivesse vindo a habi- tuar à ideia de um dia ter que ser. Foi para a sala, onde o velho estava sentado, deu-lhe um beijo e, na esperança de lhe ar- rancar um sorriso, disse-lhe:
– Então, meu pai? Gran- de dia! Ouvi dizer que a tia o reconheceu...
– É verdade, filho. Que alegria... desde que foi para lá, foi a primeira vez, mas por pouco tempo, coitadi- nha, de um momento para o outro, apagou. Isto não tem cura, pois não filho?
– Nunca se sabe, meu pai, com a evolução da ciên- cia...
... e o Joaquim, lá ficou, de olhos entristecidos e om- bros encolhidos, assentes numa fé de que estava qua- se convicto de ser em vão.
– Oh Zé!!! Podes chegar aqui à cozinha, que eu pre- ciso de ajuda. (Chamou-o a
esposa, que tinha acabado de falar com o filho).
Ester, mulher de armas e de família, matriarca à moda an-
tiga, sempre zelosa do bem-estar dos seus.
– Olha, meu querido, eu sei que tens andado a fugir ao
assunto e eu compreendo-te, acredita, mas não pode passar de hoje... temos de lhe falar... vamos dar-lhe todo o apoio... senão, um dia destes, ainda temos que lidar com alguma des- graça e, depois, será pior. Para não ser tudo mau, vou cozi- nhar o seu prato favorito e tu bem podias ir buscar aquela garrafa que estavas a guardar para o aniversário dele, logo se compra outra. Agora, enquanto eu trato disto, vai até à sala e, se conseguires, vai preparando terreno.
José, de coração despedaçado, foi à garrafeira e retirou a garrafa de tinto reserva, com letras douradas, coisa de ricos, que o patrão lhe tinha oferecido pelo Natal e abriu-a, dizem os entendidos que é preciso deixá-lo respirar... e deixou a garra- feira aberta... e voltou para a ir buscar a garrafa de ginja e dois
Ramiro Nolasco
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