Page 5 - Boletim numero 260 da APE
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BOLETIM APE | JAN/MAR 2021 CRÓNICAS
Professores do IPE na resistência contra a ditadura do estado novo
Jacinto Rego de Almeida 19520049
Recordo alguns professores da minha geração de alu- nos que desapareceram do IPE e do país, envolvidos por nuvens de secretismo. Entre outros, o Moleiri-
nho do Carmo, salvo erro professor de História e o major de cavalaria Luís Cesariny Calafate, professor de portu- guês. Eles teriam à volta de 45 anos de idade. “É pá, o que é que aconteceu ao Calafate? Hoje não houve aula”, “Não sei, parece que foi preso”, “Preso? Porquê?”, “Não sei bem, e também o Moleirinho do Carmo, e o Alvarenga... depois da formatura, falamos.” Tinham participado da Re- volta da Sé. Tínhamos 15 ou 16 anos e foi um sinal, entre outros, de que tudo estava muito mal à nossa volta. Estava mal o patriotismo sustentado por rituais e liturgias, os lugares da memória confundidos com identidade nacional, a censura prévia à imprensa e espetáculos que estimu- lava rumores e meias verdades, a fraude eleitoral que impedira a eleição de Humberto Delgado à Presidência da República...
Mas a maioria dos que procuraram resistir à ditadura perderam-se na História. No livro recentemente editado, “Jaime Morais – Apontamentos de uma vida”, organizado pelas pesquisadoras Heloísa Paulo e Cristina Clímaco, pela Editora Quatorze (Bordeaux – França) do Comité francês Aristides de Sousa Mendes, é referido o tenente de infan- taria José Lopes Soares (? –?), professor dos Pupilos do Exército. Ele participou do “3 de fevereiro” ao comando do regimento de Caçadores 9, entrou na clandestinidade após esse movimento de insurreição política e organizou os grupos civis que participaram na revolta do Castelo. Em setembro de 1928, reuniu-se na Figueira da Foz com exilados e foi detido pela Polícia de Informações. Mais tarde, participou da revolta das Ilhas em Ponta Delgada onde se encontrava com residência fixa. Em 1930 foi demi- tido do exército por motivos políticos sendo amnistiado em 1936.
Devido à Revolta da Sé, Moleirinho do Carmo e Alva- renga, oficiais superiores um deles de engenharia, foram presos para a Trafaria. Mas voltemos ao major Calafate. Era um homem de estatura mediana, discreto, muito cató- lico e generoso nas avaliações escolares. Desertou e exi- lou-se na Venezuela no fim dos anos 50. Neste país fora constituído o Comité Pró Libertad y Democracia de Por- tugal, vice presidido pelo influente deputado venezuelano César Lovera, a Junta Patriótica Portuguesa, presidida por Mário da Fonseca, exilado com suspeitas de estar ao serviço da PIDE, e uma grande rede de exilados que repre- sentavam várias tendências políticas. “Deixa sempre a gaiola aberta para o pássaro poder voltar”, terá sussurra-
do um alto dirigente militar do regime salazarista, penso. Adiante.
Em 1959, Calafate vivia, em Caracas, num apartamento com Henrique Galvão (que anos depois comandaria o se- questro do paquete Santa Maria que abalaria e fragilizaria o regime de Salazar) no bairro de Sabana Grande, num pri- meiro andar que servia de sede e base de operações ao gru- po oposicionista liderado por Galvão. (No apartamento ao lado, duas italianas dedicavam-se à prostituição.) Calafate, sem uma sólida formação ideológica, vivia amargurado com saudades da família e da vida que deixara em Lisboa, o con- vívio com os seus companheiros de armas, o seu barco de recreio e a estabilidade e desafogo material. Camilo Mortá- gua foi seu companheiro de exílio poucos meses antes da chegada à Venezuela de Humberto Delgado e Henrique Gal- vão. Estimava-o e escreveu sobre ele no seu livro “Andan- ças para a liberdade – volume I”. Havia uma tolerância con- descendente em relação a Calafate por parte da comunidade de exilados tendo em vista as evidentes limitações políticas do major. Ele viu-se dividido entre os comunistas da Junta Patriótica e Henrique Galvão, e com a sua “infinita e ingé- nua boa vontade...queria juntar os comunistas com os ca- tólicos, fazê-los compreender que ambas as correntes luta- vam pela felicidade dos homens e que essa seria a melhor maneira de isolar o ditador na sua aleivosia cega contra os comunistas.” Convencido de ter encontrado uma solução para as dissidências decidiu-se a argumentar exaustivamen- te com Galvão. Certo dia, no pequeno apartamento, argu- mentou, argumentou... e não desistiu até vê-lo caído no chão com um enfarte de miocárdio. Quando mais tarde Gal- vão se recuperou do enfarte, “o major terá selado o seu percurso”. Pediu perdão a Salazar e regressou a Portugal e à sua carreira militar tendo-se reformado com o posto de tenente-coronel. O pássaro voltou para a gaiola.
Em 1975, Calafate editou um livro, “A liberdade tem um preço” que teve pouca repercussão. Mas documentação a seu respeito encontra-se no Centro de Documentação 25 de abril – arquivo Calafate, em Coimbra, e na Biblioteca do Museu da República e da Resistência, em Lisboa.
Com a sua fragilidade ideológica e convicções pouco fundamentadas, Calafate, um filho da ditadura salazarista, foi uma referência muito fugaz para adolescentes como eu, seus alunos no IPE. E recordo-o evocando Franz Kafka. Na sua obra o escritor checo e uma referência da literatura mundial, suscita o tempo de uma humanidade que perdeu a continuidade com a humanidade, uma humanidade sem memória. E quando o esquecimento ganha, a liberdade está sob ataque.
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