Page 36 - Boletim numero 260 da APE
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 PALAVRAS SOLTAS
BOLETIM APE | JAN/MAR 2021
      António Santos
19730262
À minha maneira
E agora, que estou mais rente da sina
E então enfrento o fechar da cortina, Meu amigo, digo-te com toda a clareza Que a ti me exponho com toda a firmeza.
Vivi uma vida farta de cheia. Viajei cada uma, a estrada inteira, Mas mais, muito mais que a ideia, Fi-lo à minha maneira.
Arrependimentos, tive alguns
Mas, ainda assim, muito poucos para mencionar, Fiz o que eu tinha que fazer, incluindo os jejuns,
E sempre olhei para isso com a isenção no pensar,
De que planeei cada desafio e compromisso
Com um passo cuidadoso ao longo da passadeira Mas mais, muito mais do que isso
Fi-lo à minha maneira.
Sim, houve momentos, tenho certeza, que os sabes, O quanto eu mordi mais do que poderia mastigar, Mas apesar de tudo, das dúvidas e até dos milagres, Eu comi e cuspi sem hesitar,
Encarando tudo, mantendo-me firme e fiel à bandeira E fi-lo à minha maneira
Eu amei, ri e chorei
Tive o meu quinhão e a minha cota naquilo que perdi,
E agora, de lágrimas contido, vejo como foi divertido, Ter feito tudo de forma tão inteira
Podendo dizer que não fui inibido,
Ah eu não, eu fi-lo à minha maneira.
Para que serve um homem, com tudo o que conseguiu
Se não se tiver a si próprio, mesmo com o que não adquiriu
Para poder dizer todas as coisas como ele realmente as sente
E não as frases batidas de alguém a quem tenha que ser obediente.
Pôr-se de joelhos de forma lisonjeira? No meu currículo sempre mostrei Todos os golpes que suportei,
Mas fi-lo sempre à minha maneira.
A alquimia do desconhecido...
“Quem é o verdadeiro autor daquilo que es- crevemos?...”
E de repente, dei comigo a tentar digerir esta ques- tão, aparentemente tão descabida e provocadora. A colocar-me no papel que recorrentemente assumo, de escrevinhador de palavras e pensamentos.
Tomando como ponto de partida que as palavras que escrevo nascem do meu próprio ser e fluem no leito de um rio interior que desagua na mítica folha branca que todos aqueles que escrevem imaginam à sua frente no momento da criação, qual a minha condi- ção neste mistério da escrita e a quem atribuir a ver- dadeira autoria do texto, prosa ou poesia, que depois leio e releio, procurando o reconhecimento e valida- de de um impulso solitário que me assalta e cultivo?... É a obra da autoria do autor, ou o autor não passa de um veículo para que a obra surja de dentro de si pró- prio, para iniciar então a sua vida própria? E o seu crescimento seja conseguido através de cada leitor que conquista?...
A criação, sob um ponto de vista artístico e intelec- tual, será talvez obra de um impulso, orgânico ou incorpóreo, que nos assalta a nossa inquietude laten- te. Uma necessidade de criarmos e darmos forma, material ou literária, às reflexões ou imagens que vão crescendo no nosso mais profundo ser. Podemos chamar-lhe cérebro ou alma, ou apenas senti-lo sem sabermos que definição lhe dar. É um reflexo daquilo que vemos e sentimos, daquilo de que nos apercebe- mos e nos estimula os sentidos e sentimentos. Aquilo que depois produzimos é algo, imaterial ou não, mas que tem sempre na sua génese a nossa necessida- de de transmitirmos emoções. Mas as emoções não são algo que possamos verdadeiramente possuir. Existem e declaram-se dentro de nós apenas, e talvez sejam elas, que numa alquimia do desconhecido, de- vam ser o autor daquilo que nós apenas veiculamos, para os outros decifrarem as nossas emoções.
Ernâni Balsa
19600300
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