Page 5 - Boletim numero 259 da APE
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Todas as casas deviam ter varandas
eve de vir uma pandemia para pôr em causa a nossa forma de vida. E o que dantes era natural e desejável foi sendo substituído por uma cultura de medo e dis-
tanciamento que também não nos beneficia.
Cada um de nós viveu o confinamento à sua maneira, uns
mais escrupulosamente fechados em casa, outros, como eu, que tinham de transgredir um pouco nem que fosse para be- ber um café num copo de plástico ao frio, no meio da rua, meio escondidos dos carros da Proteção Civil que passavam a mandar-nos recolher...
Quando tudo isto começou, o Jorge veio para casa em teletrabalho e o meu trabalho aumentou, pois passei a ter de fazer almoço. E a rotina alterou-se, acabou o ginásio, as saídas, as compras, enfim, a roda incessante de atividades que preenchem os nossos dias e que acabam por ser, tam- bém, a sustentabilidade da vida de muita gente.
Acordar cedo é um hábito antigo e assim todos os dias às sete horas da manhã eu e o Jorge levantávamo-nos e íamos transgredir... havia um único cafezinho aberto e os patos do parque da cidade aventuravam-se em passeios na avenida principal, tão surpresos quanto nós.
A seguir íamos ao supermercado fazer compras. Se ao prin- cípio eu até achei graça àquela novidade de ter os meus meni- nos em casa e me esmerava nos almocinhos, depressa pus um ponto de ordem nisso e simplifiquei as coisas, fazendo refei- ções mais ligeiras, pois o Take Away também não era solução.
O supermercado tornou-se no único ponto de diversão e despesa e a centralidade da vida passou a ser o recesso do lar... Tenho a sorte de viver numa casa antiga e grande, no centro do Barreiro, herança dos meus pais. Aguentámos bem o confinamento sem grandes apertos, só que a casa não tem varandas, o que me levava a transgredir para ir beber café, pôr o lixo, reciclar, ir ao supermercado... Enfim, pôr o pé na rua e apanhar um bocado de ar, debaixo das críticas do
meu filho Zé que não se aventurava como eu!
CRÓNICAS
              Maria do Rosário Pires
19771001
Os primeiros dias foram engraçados, mas passado algum tempo eu já não aguentava as piadas constantes nas redes sociais nem as notícias alarmistas da televisão: sonhava com o meu jardinzinho em Lagos e só me apetecia desconfinar! Mas nem isso podia fazer, pois estávamos em estado de emergência!
Até que um dia, depois da Páscoa, nos fizemos à estrada às cinco da tarde, rumo ao Algarve, para o que desse e vies- se, pelo menos tínhamos tentado... Nem vivalma naquela A2, a cada área de serviço que passávamos eu rezava, chegá- mos à Via do Infante, menos mal, estamos perto das rotun- das de Lagos, é melhor entrarmos em casa e irmos logo arru- mar o carro na garagem, para os vizinhos não nos verem...
E foi assim que iniciei os quatro meses mais maravilhosos da minha vida, dediquei-me ao jardim e à casa, fizemos obras, o Jorge continuou em teletrabalho, íamos beber o nosso cafezinho da praxe de manhã bem cedo, compráva- mos uns peixinhos que assávamos na churrasqueira, à tarde até dava para dar um saltinho à praia. Vivemos a Primavera e o Verão, abençoei as nortadas que afastavam todos os ví- rus, vivi um confinamento desconfinado ao ar livre e reco- nheci tudo o que é essencial para mim.
Aos poucos, vamos retomando o ritmo de antigamente e voltei à minha casa do Barreiro. Mas falta-me uma varanda onde possa sentir de corpo inteiro o ar a roçar-me a pele e a agitar-me os sentidos.
Se eu mandasse, todas as casas teriam uma varanda, um pátio ou um jardim. Todos precisamos de um espaço de eva- são, que nos permita perceber e apreciar o que é verdadei- ramente importante.
      Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • outubro a dezembro | 3
Foto: Elsa Martins Magro















































































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