Page 5 - Boletim Nº 254 da APE
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CrÓniCas
Considerações sobre o adágio
António Barroso (Tiago)
19460120
“ESTA vIDA SãO DOIS DIAS”
Em épocas bem mais recuadas, o povo, na sua ances- tral sabedoria e com a experiência da vida, inventou afo- rismos sem um significado aparente, ou até mesmo con- traditório, considerados numa apreciação à letra, mas com um conteúdo tão significativo e simbólico que, apenas uma peque- na frase traduzia um longo pensamento ou uma observação constantemente repetida. Era a linguagem do simples sem lon- gas e rebuscadas explicações, com que as pessoas expressavam os seus pensamentos ou se referiam a um dado acontecimento.
Depois de inventados e, possivelmente, burilados pelo tem- po e pelo uso inicial, entravam esses aforismos, ou adágios, na corrente oral do povo que os manejava a seu bel prazer, conso- ante as situações surgidas e a que os mesmos se aplicavam, e onde eram, de imediato, assimilados por toda a comunidade.
Poderia citar variadíssimos exemplos, mas vem-me, de re- pente, à memória a expressão “esta vida são dois dias” talvez porque, na sua permanente observação da vida, verificaram os nossos ascendentes, mais ou menos longínquos, que todos os seres nasciam e morriam num espaço de tempo tão curto à escala universal que, simbolicamente, apenas lhes poderiam ser atribuídos dois dias, o do nascimento, e o da morte, frase que aplicavam, com uma certa dose de humor, para justificar os seus procedimentos quotidianos.
O tempo, num entendimento de época, vai, no entanto, evoluindo e modificando o seu conceito básico começando, aos poucos, a perder qualquer potencial significado para se transformarem em justificativos de toda a espécie de desva- rios, de desmandos, de fugas ou desvios aos princípios morais estabelecidos.
É preciso alcançar um fim, um objectivo, sem sequer olhar as meios, calcando e pisando tudo e todos pelo caminho, so- mente porque “esta vida são dois dias”; atraiçoa-se um grande amigo por um prato de lentilhas, ou por um desejo momentâ- neo de sucesso, apenas porque “esta vida são dois dias”; aban- donam-se os pais idosos em lares obscuros, porque dão muito trabalho, desconforto e despesa e “esta vida são dois dias”; não se honram os compromissos assumidos porque exigem doses de sacrifício e “esta vida são dois dias”; despreza-se o verdadeiro amor para se assumir o prazer de momento, por- que “esta vida são dois dias”; enfim, alteraram-se tantos e tan- tos valores herdados de nossos ascendentes, porque a época actual, mercê duma degradação progressiva, despreza o es- sencial, enaltece o supérfluo e reforça o egoísmo, tudo por- que, afinal, e usando o aforismo de que, agora, se recordam, “esta vida são dois dias”.
Deste modo, um adágio que o povo criou com um significa- do consensualmente, aceite, acabou por degenerar e ser to- mado no sentido duma justificação para actos que a consciên- cia – se é que ainda existe – condenaria. Não mais a frase se aplica aquele dito humorístico usado por nossos pais e avós, quando se queriam referir a um qualquer atraso no tempo.
Se bem que consciente, responsável e crente de tudo aqui- lo que deixo apontado, por favor, não me interpretem como analista de situações que podem evoluir de várias formas, ou detentor duma verdade que até pode ser contestada, porque, sabem que, em coerência com tudo o que já escrevi... “esta vida são dois dias”.
Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro | 3