Page 13 - Anexo do Boletim 253 da APE
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EVOCAÇõES
  regressávamos. Podemos dizer que fomos abençoados. Connosco a felicidade da vida realizada, da esposa certa e filhos criados. Falávamos agora da reforma, da Caixa de Aposentações, das sacanices Socratinas e apertos de Passos... foram
tantos esses momentos, querido irmão, sendo que o maior de todos nos últimos tempos foi a nossa viagem juntos à Índia, à terra que nos viu nascer, aos lugares do nosso imaginário de crianças .... sessenta anos depois voltávamos a calcorrear as ruas do bazar, de manguinha e sal na mão e, qual magia, naquele escurecer avistámos pirilampos ... seria o seu iluminar o sinal de que os nossos sonhos de criança, se cumprira? Foram dias únicos, repletos de emoção, em cada canto a sua história ... no silêncio e na modorra da noite ou no bar do Cidade de Goa cruzávamos pensamentos, conscientes que depois de uma vida sofregamente vivida, muito em breve iríamos entrar nos tempos do “calma aí pá ...”
É tempo de parar.
Estes são alguns de muitos capítulos da história da minha vida, contigo partilhada. O livro é grande e sinto em cada linha que estou ligado a ti por este fio de histórias. Umas minhas, outras tuas, todas nossas. Frutos da mesma árvore, um fizemos crescer o outro. Repito. Algo, bem de dentro, impôs-me a escrever-te estas linhas pelo teu aniversário, relembrando entre os antigos e novos pilões a pessoa forte que sempre foste ... Choro todos os dias a tua ausência, irmão. O destino surpreendeu-nos levando-te muito cedo ... Sei que estás comigo, com todos nós, para sempre; como sei que nesse outro lado do caminho onde te encontras, estaremos todos um dia contigo.
Sinto-me abençoado, e tenho a certeza que todos os outros também se sentirão, pela condição única de te termos tido como irmão, marido e pai, pessoa única, inesquecível, grande e de todas as horas, certamente o melhor de todos nós.
 quantas vezes à rapidez das decisões. Mas ainda nos encontrávamos e falávamos de opções. Via-te triste e indeciso. “E tu?” perguntava eu... “Olha, ainda vou à Universidade e aos treinos de futebol mas não sei ...!” E compreendia as tuas hesitações, a tua ânsia de partir, pois o prédio Funchal, onde habitualmente namoravas, já não o frequentavas, era agora apenas uma recordação dolorosa, pois o teu “amor” havia regressado a Portugal!
O evoluir desastroso da descolonização, fez com que num ápice viéssemos para Portugal. Eu para Santarém com os meus. Tu no eixo Oeiras – Madre de Deus onde reencontraste o teu amor. Pouco depois, concluído os estudos e iniciada a profissão, também chegava o teu dia de deixar a casa paterna ... como eu, iniciavas agora tu o segundo ciclo de vida. E naquele rés-do-chão de Oeiras a tua cama era dobrada e recolhia à cave ...
Se a nossa conjunta e esplendorosa viagem enquanto crianças, jovens e homenzinhos, havia terminado, a viagem agora enquanto responsáveis e plenamente cidadãos do mundo, como seria normal, continuaria. E encontrámo-nos no centro de um mundo que tem as suas coisas boas, mas também tem o seu lado perverso, de rasteiras, cruel, que atrai para a indefinição do real, que nos embebeda, nos procura arrastar para o centro de nada, senão para o da efemeridade das coisas e momentos. Próprio da nossa natureza, porque combativos, fizemos frente, saímos vitoriosos e para isso foi sempre importante o elo familiar. Lutámos pela família! Lutámos pela profissão! Lutámos para que na vida nos mantivéssemos de cabeça levantada! Uma palavra aqui para as duas Jovens que, decidida a escolha, desde a primeira hora se dispuseram a acompanhar-nos para o resto das nossas vidas, mulheres únicas e fortes, que souberam vencer os escolhos da vida que nos surgiam, que iluminavam os nossos passos, falavam-nos do caminho a seguir... “não, não vás por aí”, ou se necessário fazendo soar o alarme, como que dizendo: “cuidado... porque a vida também é traiçoeira, e não é só mistério e magia”.
Passavam-se os anos e eu sempre distante, longe de todos, em Santarém. Mas sempre que possível em reuniões de família, em encontros com amigos, nos eventos do Pilão, nos almoços dos “Comandos”, púnhamos as conversas em dia como pais orgulhosos que já éramos, ou anos mais tarde num silêncio comum separado por vários milhares de quilómetros, onde não eram necessárias palavras, mas sim sentimentos... tínhamos o cuidado de os fazer chegar um ao outro, pois não só Macau ficava distante, como nos havíamos envolvido numa gestão difícil e, por vezes angustiante, na conciliação do tempo e das responsabilidades. Mas sim, partilhámos vezes sem conta, esses momentos, e dávamos conta que em nós vivia intocável o amor de irmãos, um ao outro, à família e à vida.
E muitos anos assim se passaram. Os filhos acabavam os seus cursos. Aproximava-se a velhice. Caminhávamos para “cocoanas” como se dizia naquela Moçambique que tanto amamos e, qual magia, periodicamente a ela
 S. Pedro do Estoril, Abril de 2019
Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho | 12






















































































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