Page 11 - Anexo do Boletim 253 da APE
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EVOCAÇõES
  “babá, babá Chef acho cheddo” (olá meninos filhos do Chefe).
Poucos anos depois deixávamos a Índia e vínhamos para Moçambique. Já rapazes, a diferença de idade pouco nos afectava, partilhávamos as nossas brincadeiras, fosse a correr os “dinky toys” pelas bordas do passeio, fosse a descer as rampas vizinhas em carrinhos de rolamentos ou, de chapéu, coldres e pistolas brincar aos “cowboys”, ... Éramos assim, sempre próximos, não só nas brincadeiras, mas também na procura e aventura, ....como certa vez na casa velha da Rua Princesa Patrícia, em que brincando aos electricistas, estoiraste com a instalação eléctrica, puseste- nos às escuras por dois dias e endividaste o pai por alguns meses... Eram tempos felizes onde só se partilhava a tristeza e por pouco tempo, quando herdavas em segunda mão as roupas por mim usadas e que já não me serviam ...nada a fazer! Eras mais pequeno e em casa de gente não rica ... e o pai procurando minorar a tua tristeza lá dizia “Quando forem para Lisboa, para os Pupilos do Exército cada um terá a sua farda”. E foi assim que ouvimos pela primeira vez o nome daquela Casa que tem por lema “Querer é Poder”.
Aos dez anos deixava eu a família e a tua companhia, e rumava finalmente para Lisboa para o Instituto dos Pupilos do Exército, cumprindo a vontade do pai que para os seus rapazes almejava uma educação exigente e os Pupilos do Exército era conhecida por exigir aplicação, estudo e cidadania. Passados dois anos vinhas tu... e de pequeno e enfezado já nada tinhas, pelo contrário, embora três anos mais novo, já me alcançavas em altura. Assim vivemos, cada um com a sua farda, um ano juntos e longe da família. Eu o 364 e tu o 309. Eu aluno da 2a Companhia. Tu da 1a. Como irmão mais velho era com gosto que aos fins de semana satisfazia os teus pedidos: levei-te a ver o nosso Benfica, na Luz, onde bateu o Leixões por 2-0; levei-te a ver a “Família Robinson” e o “Colosso de Rodes” no Cinema Lys; levei-te ao Jardim Zoológico onde vimos o Fernando Tordo a cantar ainda em calções; levei-te à Feira Popular onde os dois comemos caracóis pela primeira vez, etc. etc. Lá dentro, no Pilão, protegia-te: não “lerpaste nos comes” que os pais enviavam de Moçambique, nem desceste à noite e no escuro à “Casa dos Ossos da Capela” e pelo estatuto que tinhas de teres um irmão aluno e mais velho, até te livraste de puxar o brilho aos botões da farda ou aos sapatos de um outro qualquer aluno mais velho ..... e naquela Casa, embora por pouco tempo, encorpámos um caldo de princípios e valores, de ideias e amor ao nosso Portugal. Pela noite, quando o silêncio convida à reflexão, não foram poucas as vezes que, com saudades dos pais e das nossas “sportinguistas” lá longe em Moçambique, no jardim do bebedouro de água, em frente à casa do Sargento Bretes, que nos guardava os “comes” mandados pelos pais, nos abraçávamos e juntos chorávamos, qual muralha e abrigo perante imprevistas “tempestades”, próprias da idade.
Perante o grande aumento das propinas para o 6o grupo, porque agora filhos de um civil, regressávamos a Moçambique. Acabava o uso das fardas. Os Maristas,
 Desde que vieste ao mundo, (eu já cá estava, só e entre 3 queridas irmãs), ficámos de imediato ligados por uma cadeia de instantes, de gestos, actos e experiências, partilhados por esse amor tão delicado que, quantas vezes ainda inconscientemente, se constrói entre irmãos. Não estava eu mais “só”, entre elas. Agora éramos dois. A tua chegada nada diminuiu em mim, pelo contrário, tudo aumentou: ganhei em companhia masculina, na partilha de segredos e brincadeiras próprio dos rapazes, na “luta com o sexo oposto” (entretanto elas, as irmãs, logo depois seriam quatro), no verdadeiro amigo, que sempre fomos, e até na feliz chegada de mais um benfiquista que comigo emparceirou enfrentando as quatro irmãs sportinguistas. Brigas? Quem as não tem, mas nada que durasse, pois, minutos depois já não nos lembrávamos. Crescíamos lado a lado, nós e elas, ligados num equilíbrio que se tornava belo e assaz invejável, bastas vezes referido pelos outros, sem desdém, como os “manos Azevedo”. Vem-me à memória que também assim ficámos conhecidos no Pilão.
Tenho que parar! As lágrimas, silenciosamente, fazem a sua aparição...., pois escrever sobre um irmão que tanto amámos e que partiu inesperadamente há dois anos é seguramente um exercício difícil, que obriga a mergulhar no mais profundo de nós, pois todas as memórias vêm ao de cima, não sobrepostas, memórias lindas, apenas com a dificuldade de não se poder destrinçar quem as viveu mais intensamente: se tu, se eu.
Ao folhear o livro com a “história da minha vida” encontro- te em todos os capítulos. Logo no primeiro, na distante Nagar Haveli, ex-Estado Português da Índia, onde nasceste pequenino, moreno e de olhos brilhantes, desde cedo colocado no meu quarto. Tinhas um ano e eu três e pouco. Contava a nossa querida mãe que pela noite, quando choravas, era eu o primeiro a atender-te, aflito ....para depois correr a chamá-la e ela exausta, exausta sim pelos trabalhos que a mais nova agora dava, a Dalila, me dizia: “Deixa Cândido, chorar uns minutos faz bem ao Américo...”.
Pouco tempo depois, já em Damão, após a chuvada da monção pela hora do jantar, em caminhadas aventureiras pela calada da escuridão, a pouco mais de cem metros de distância da porta da casa, levava-te a ver os pirilampos. Aí ficávamos eternos minutos a admirá-los sem apanhá-los, contemplando a sua luminosidade e a beleza da sua fragilidade dançando na brisa que se fazia. Ali de pé, de mãos dadas e naquele silêncio, seriam aqueles traços de luz a escrita dos nossos sonhos ou seria o nosso destino em asas? Recordo-me de vultos no escuro aconselharem-nos em língua guzarate “vai adihyaksha no dikro...” (vão para casa meninos ...).
Mais crescidotes, já em Bicholim, Goa, no quintal do casarão onde agora morávamos corríamos o arco, lançávamos o pião ou jogávamos às escondidas. Outras vezes, de manga verde e sal nas mãos, passeávamos ufanos pelas ruas do bazar mesmo em frente da nossa casa, por sermos reconhecidos e cumprimentados em concanim por
 Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho | 10
























































































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