Page 12 - Anexo do Boletim 253 da APE
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 EVOCAÇõES
 Colégio Pio XII, era agora a nossa Escola, embora em anos diferentes. Aqui ensinaram-nos os valores da entrega, da dádiva e do sacrifício. Estas duas Casas haviam-nos modelado para o resto da nossa existência. Também aqui fizemos amigos para toda a vida. Tais vivências tornavam- nos grandes, generosos e inteiros. Ambos tornámo-nos grandes desportistas: procurávamos potencializar as nossas energias, na procura de uma rotina saudável e impenetrável a ondas de frustração e desânimo trazidas pela guerra que agora grassava no Norte de Moçambique. Crescíamos. A diferença de idade dissipava-se. Acompanhámo-nos nas dúvidas e nas escolhas, nem sempre fáceis...
A Associação dos Velhos Colonos era agora o teu abrigo, onde te aplicavas na tua natação. Crescias a bom ritmo. Para mim era o Clube Ferroviário que me proporcionava a Ginástica de Aparelhos iniciada nos Pupilos com o mestre capitão Robalo Gouveia. Eu mantinha-me pequeno, mas ganhava físico, que dizias invejável. E porque continuávamos filhos de família não rica, invertiam-se os papéis: tu estreavas agora as novas roupas e eu triste e sempre em protesto, porque o estatuto de ser mais velho de nada valia, recebia as tuas, já usadas ...
Outros anos vieram. Caminhávamos juntos. Um protegia o outro. A mesma lâmina aparava os poucos pêlos da barba dos dois... Crescíamos em tamanho e hormonas, bem como em ideias, que trocávamos à noite no nosso quarto, camas lado a lado. Entre outras conversas, agora dois motes principais havia: desporto e paixões. Quanto às paixões com prazer genuíno falávamos das nossas descobertas, daqueles amores primeiros, dos encontros e sonhos, próprios da idade. Um do outro ouvíamos as narrações em detalhe e com atenção, revelando o nome e o local percorrido pela apaixonada do momento. E eram tantos os locais falados ao longo do ano: Casa do Minho, Colégio Barroso, Liceu António Enes, Malhangalene, Bairro da COOP, Ateneu Grego, SNECI, etc etc. e adormecíamos envolvidos no perfume da imaginada. Foram paixões educativas, sonhos, poesia ... e naquele Carnaval recordas? Nós, o Luís Carlos e o Carlos Santos mascarados de “prisioneiros do amor” sim de amores do momento, de um amor de idas, voltas, rodopios ...
Pouco depois viriam outros tempos: o de frivolidades, da contestação, dos “partys de garagem”, do “make love not war”... o tempo do “Bonnie e Clyde”, do “No Calor da Noite”, ou do “Dio Como Te Amo”. Era o tempo da perda da inocência, da excentricidade psicadélica, o tempo do “The Doors” com o seu "Light my Fire" and “Touch me” que se aproximava... No desporto éramos admirados e a cidade rendia-se aos irmãos Azevedos, agora em escolas diferentes, cada um na sua baliza defendendo as cores da sua selecção, fosse no andebol ou futebol de salão. Um procurando ser melhor que outro dentro do campo. Levas de amigos corriam aos pavilhões desportivos para verem jogar os dois guarda-redes irmãos, um contra o outro e não eram poucos os comentários: “os gajos são bons, lá nos Pupilos puxaram por eles ...”. Fora do campo de jogos dávamos conta de quando em vez do quebrar dos nossos
 corações e então sofríamos um pelo outro minimizando a tristeza. Eram os altos e baixos próprios de que tempos de escolha mais sérios estariam para chegar ... e falávamos na necessidade de sermos grandes, inteiros, verdadeiros a enfrentar o futuro, procurar não ser mais um, mas dos melhores. Conseguiríamos? Sabíamos um do outro com uma clareza e uma clarividência difíceis de igualar.
E eis que vem a separação física, normal entre irmãos. Portugal chamava-nos a cumprir a nossa responsabilidade pela Pátria. Primeiro eu. Dois anos depois tu. Fomos ambos para os Comandos. Perfeccionista e exigente, eu, nunca tive dúvidas de que também irias desempenhar nos Comandos o teu papel de forma envolvida e inteira. E assim aconteceu naquela guerra que não quisemos. Não poderia ser de outra forma. Ambos tínhamos aprendido tal postura no Pilão. E naquelas longas e muitas noites na mata, onde tivemos como cama e cabeceira restolhos, pedras, pântanos, ... vivemos situações únicas e perante impulsos incontroláveis, procurámos ser cumpridores, exigentes. Num clima que se por vezes nos derretia, outras, porque frio, nos vazava até aos ossos, entre tiros, rebentamentos, gritos de dor, envolvemo-nos em temas inquietantes que nos pareciam raiar o absurdo. Estávamos preparados para isso. Não fomos refractários, não ficamos na fila de trás, não nos encolhemos.
A separação física já iniciada mantinha-se, excepto em períodos de férias. Então, depois de uma passagem pelo “Shake”, “Girassol”, “Polana” ou outro convidativo lugar, já tarde quando nos recolhíamos ao quarto, era o nosso tempo. Voltávamos às nossas conversas, às nossas confidências, agora mais sérias. Falávamos agora de amores sem fim, de olhares e flores, de poesia. Os olhos dela, dizias-me, “são as janelas da alma ...” e eu para não ficar atrás falava dos olhos da minha, que, dizia “... eram as vitrines do coração”. Éramos agora Homens completos. Falávamos então de outras duas responsabilidades que se aproximavam: formação e família. Família, sim, pois cada um de nós, conscientemente, havia já feito decididamente as suas escolhas. Formação, para garantia de um futuro naquele horizonte cada vez mais cinzento ... Cada um cumpriria com as suas responsabilidades.
Da minha parte o assumir dessa responsabilidade aconteceu a 1 de Dezembro de 1973, dia do meu casamento. E tu irmão nesse meu feliz dia não estavas comigo, cumprias na selva, bem lá no Norte as tuas obrigações de militar, na guerra já atrás referida. Embora feliz com a minha Isabel, chorei nesse dia e muito, a tua ausência. Sentia que a partir de agora os nossos momentos únicos lado a lado acabavam, ... uma nova realidade chamava-me agora: o de ser marido e pai. Iniciava agora eu o segundo ciclo da minha vida. E assim aconteceu. O nosso quarto passava agora a ter apenas uma cama, a tua. O espaço da minha foi ocupada por uma velha secretária adquirida pelo pai em segunda mão.
E vêm as mudanças bruscas com 74. Todos nós encarávamos agora o futuro com preocupação. Terminavas o serviço militar. A rapidez do momento levava
 11| Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho
























































































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