Page 7 - Boletim APE 253
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 é habitual trouxeram o filho que alimentam até poder ser devolvido à floresta). Em outra oca conhecemos Tito, “tem mais de 100 anos segundo estimativas da FuNAI, ele co- nheceu o Marechal Rondon”, e uma sua bisneta, sempre presente, serve de tradutora. Ele perguntou se éramos ma- deireiros referindo-se a antigos contactos que tinham em vista pagamentos ilegais dentro da área protegida em troca de abate de árvores. Não podemos separar o bem do mal, ambos fazem parte de um todo, pensei.
Dias depois Raoni convidou-nos para acompanhá-lo, “vou à pesca”. Entrámos na floresta, estreitos caminhos, em meio a vegetação cerrada, lianas, bati com a cabeça num tronco, passei a mão pela cabeça ensanguentada, Gonçalo curvado ao peso da mochila com as máquinas fo- tográficas também acompanhava a caminhada com dificul- dade, eu tentava afastar os insetos de toda a espécie que me mordiam mesmo por cima da camisa, o índio só com um calção, sempre com o arco esticado e atento ao menor ruído andava a passos largos. “Ainda estamos longe?”, gri- tei. Raoni fez-me sinal para que me calasse. A caminhada prosseguia. A luz descia em fios dourados, por entre galhos e folhas, para o interior da floresta. A dado momento, pará- mos num lugar que se assemelhava ao paraíso tal como o imaginamos. um rio fazia uma espécie de pequena lagoa cercada de árvores com galhos retorcidos, eram tantas as copas que custava a ver o azul do céu. Ouviam-se os asso- bios do pássaro biscateiro como os acordes de uma música celestial. Raoni saltou para um forte galho à beira da água. Sentei-me a descansar a ver o índio tenso com o arco esti- cado a observar a água. Pensei em fugir dos insetos que
voavam em nuvens, em despir-me e tomar um banho na- quela água que parecia nunca ter visto ninguém nela se ba- nhar. Raoni disparou a flecha e depois puxou-a satisfeito com um peixe de tamanho médio. Repetiu, sem sucesso, a operação mais duas vezes. Depois disse que íamos regres- sar e referiu-se a jacarés debaixo das folhagens e jiboias no fundo da água, “Aquele lugar só serve para pescar, não se pode tomar banho”, acrescentou.
Alguns dias depois, chegou a hora de nos despedirmos. Toda a aldeia veio até à balsa, cruzámos o rio e eles lá, mui- tos deles nus, a dizerem adeus. Entrámos na estrada de ter- ra em silêncio. Deve ser em silêncio e com certa inocência que se chega ao paraíso. que se bate, enfim, na porta do céu. um de nós tirou um lenço da algibeira, “porra, esta despedida foi comovente”, disse Gonçalo a acomodar as máquinas fotográficas com a voz embargada.
Anos depois, em 2010, Gonçalo Rosa da Silva foi convi- dado pela Câmara Municipal de Matosinhos para apresen- tar uma exposição de fotografias intitulada “A última fron- teira”, na inauguração da 5a edição do Encontro Interna- cional LEV – Literatura em Viagem, sobre os índios nambi- quaras das Terras do Sararé. O público encheu a Biblioteca Florbela Espanca para admirar as fotografias.
As políticas preconizadas, algumas delas já em vigor, por parte do governo brasileiro, empossado em Janeiro do corrente ano, preveem grandes dificuldades para as comu- nidades indígenas do país que têm merecido o repúdio da comunidade internacional e de entidades da sociedade ci- vil de defesa dos direitos humanos.
CrÓniCas
    Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho | 5



























































































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