Page 36 - Boletim nº 251 da APE OUT a DEZ de 2018
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EvoCaÇÕES
 AS REMINISCêNCIAS DA GUERRA
 Sobre o Autor
Valentino Viegas é já nosso conhecido. Escrevi sobre ele aqui no boletim a propósito do livro que escreveu sobre a guerra em Angola “A MortedoHeróiPortuguês”.OValentinoéumamigorecente,maséda- quelas pessoas que se apresenta de tal forma que tenho a sensação de o conhecer há montes de anos. É um goês que deixou a sua terra natal após a ocupação. Vindo para Portugal assentou praça e foi mobiliza- do para Angola onde fez a guerra na Fazenda Liberato tendo sido con- decorado com uma cruz de guerra. Finda a comissão vai para Moçam- bique onde começa a estudar história acabando por se licenciar em Lisboa onde faz o seu doutoramento. Dotado de grande propensão para a escrita e de uma grande capacidade de observação e conheci- mento do ser humano, escreveu a obra a que acima me refiro. Autor de vários livros de história, publicou recentemente um romance histórico “A Primeira Revolução Portuguesa” sobre o período entre a morte de D. Fernando e a aclamação de D. João I mestre de Avis. Aqui fica uma reflexão do nosso Valentino sobre as amizades que a guerra criou. Muitos de nós, Pilões, tendo passado pelas guerras, teremos por certo, imenso gosto em ler estas reminiscências.
Rui Cabral Telo. 19480265
Todos os anos, em especial nos meses de Maio e Junho, homens de idade avançada com os cabelos esbranqui- çados, muitas vezes acompanhados de suas mulheres, filhos e netos, encontram-se num qualquer restaurante do país, previamente escolhido, cumprimentam-se efusivamen- te e abraçam-se de uma forma tão forte e tão calorosa que causa surpresa e espanto a quem presencia estas impressio- nantes manifestações de afecto.
Embora custe a acreditar e por mais incrível que isso hoje possa parecer, de facto, foi a guerra colonial que os uniu.
Há cerca de cinquenta anos, mais dispersos pelas vilas e aldeias nortenhas do que pelas cidades deste país mais oci- dental da Europa, cada qual vivia virado para si próprio, des- frutando os doces anos da juventude e reflectindo sobre a melhor forma de realizar os seus sonhos mais prementes.
Obrigados a prestar o serviço militar, salvo raríssimas ex- cepções de oferecimento voluntário, quando jovens haviam sido recrutados para garantir a presença portuguesa nas ter- ras africanas e asiáticas, em nome de um Portugal uno e indi- visível, multicultural e multirracial, que nascia no Ocidente, passava por África e ia terminar no extremo Oriente. Foi no desempenho dessa ingente missão patriótica que desembar- caram por esse mundo fora em defesa do território nacional.
Exceptuando alguns mobilizados, mais bem informados e um tanto politizados, pois tinham uma visão diferente da dos líderes governamentais sobre a forma de encarar a guerra co- lonial por acreditarem que a sua solução só era possível atra- vés de negociações e nunca por via militar, todos os outros
Valentino Viegas
Historiador
participavam nela sem verdadeiramente questionar nem pôr em causa a razão de ser da sua presença nos territórios ultra- marinos.
Neste contexto, integrados na Companhia 785, Batalhão 786, em 1965 fomos mobilizados para combater no Norte de Angola.
Os dois anos de intensa actividade operacional ali desen- volvida criaram em nós laços de forte camaradagem que ain- da hoje permanecem como se tivessem sido adquiridos e fossem alimentados de forma regular e metódica desde os mais tenros anos da doce infância.
Numa Angola de tamanho colossal vivíamos no Liberato, aquartelamento de dimensões exíguas, completamente iso- lados do resto do mundo. Salvo algumas cubatas onde se alo- javam os bailundos, nativos deslocados do Sul do território angolano para o Norte em comissão de serviço para trabalhar no cultivo do café, e um único capataz metropolitano, tudo o resto se reduzia à presença da nossa Companhia 785, acomo- dada em quatro casinhas térreas, dois barracões de madeira cobertos de zinco, um refeitório também resguardado, mas despido de paredes e uma cozinha com uma única parede completamente negra de fumo. Capim e mais capim, árvores frondosas e densas matas a perder de vista circundavam o nosso acantonamento por dezenas de quilómetros ao redor.
As espetaculares paisagens daquela riquíssima terra eram um permanente deleite para os nossos olhos embevecidos, não fora as especiais boas vindas que nos reservavam os acoi- tados nos esconderijos da selva.
Aqueles que por lá se escondiam e nos atacavam, que ti- nham de se entregar ou deviam ser por nós eliminados, por serem considerados inimigos da Pátria lusitana, foram quem nos uniu e permitiu que se criassem entre nós laços de cama- radagem e uma solidariedade tão activa e tão consistente que só quem por lá andou sabe calcular o seu real significado e dar-lhe o justo valor.
Nos nossos encontros anuais, não nos inquieta reviver os momentos de combate e de recordar que, quando as balas sibilavam por cima das nossas cabeças, podíamos contar com o apoio dos camaradas que nos acompanhavam. Eles davam uma confiança redobrada e uma segurança de tal ordem que nenhuma companhia de seguros jamais poderá cobrir.
Foi nessa argamassa feita com milhares de quilómetros calcorreados, com camuflados empapados de suor e embebi- dos de lágrimas, muitas vezes perseguidos em permanência pela ronda da morte, que foi moldada a amizade que nos une e a sã camaradagem de que tanto nos orgulhamos.
No último sábado do mês de Maio, uma vez mais, recorda- remos em conjunto as vivências do passado, pois estou em crer que nenhum de nós consegue libertar-se da pele adicio- nal que a guerra em nós depositou.
34 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • Outubro-Dezembro 2018













































































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