Page 16 - Boletim nº 251 da APE OUT a DEZ de 2018
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Cultura E ConhECiMEnto
A ORDEM JURÍDICA E RELIGIOSA
DA COLONIZAçãO
AS CAPITANIAS COMO DOAçõES RÉGIAS (I)
José G. Barbosa Pereira
19510211
No século XII o progressivo conhecimento do direito romano, origina a modificação da política real em relação aos poderes dos senhores. Começa a ga- nhar corpo a ideia de que o Rei é o titular natural de certos poderes (1), e que a sua detenção pelos senhores ou comu- nidades subordinadas só se explica em termos de uma con- cessão pelo Rei. Nesta conformidade, os reis, em Portugal a partir da primeira metade do século XIII realizam “inquiri- ções” e “confirmações”, pelas quais obrigam a exibição e confirmação dos títulos dos direitos senhoriais (2).
Ao senhorio territorial acresce por via de doação régia, um senhorio jurisdicional (3) , do qual faz parte o exercício da justiça nos seus dois âmbitos, civil e criminal, com com- petências para a nomeação de magistrados e oficiais, bem como a percepção dos rendimentos que lhe forem ineren- tes (4).
A tradição jurídica portuguesa manteria quase inalterá- vel esse quadro legal em que se desenvolve o processo de criação de capitanias.
AS CAPITANIAS COMO DOAÇõES RÉGIAS. AS CARTAS DE DOAÇÃO
O sistema de administração em donatarias pareceu aconselhável em terras onde se procurava implantar uma civilização nova com elementos heterogéneos e por inter- médio dos quais se tentava resolver os problemas com que o reino se deparava em determinada fase da sua His- tória.
Assim, a partir da quarta década do século XVI, o rei D. João III considerou conveniente introduzir no Brasil as capitanias-donatarias, concedendo aos donatários, que eram ao mesmo tempo capitães, a administração de um certo número de léguas de terra, com a respectiva jurisdi- ção civil e criminal. Era, evidentemente, necessário que os escolhidos para essa concessão, dispusessem dos capitais necessários para tal investimento .
Como vimos, este sistema de administração do territó- rio tinha sido posto à prova, no século anterior, em espaço mais reduzido, nas ilhas do Atlântico.
As motivações que levaram os soberanos à concessão de capitanias, como nota Vasconcelos de Saldanha, não se reportam a uma única causa específica, mas a um conjunto de causas articuladas e afins a três tipos de finalidades, que cita : «a recompensa do mérito próprio ou herdado do súb- dito beneficiado, a prossecução de estratégias oficiais de
ordem política e económica, e a satisfação de obrigações inerentes à defesa e progresso da Fé (5).
Cita, em seguida, o procurador da coroa Tomé Pinheiro da Veiga, que afirma ser o fim principal a que são destina- das as capitanias, o da «povoação da costa e terra firme de- las com a obrigação de levarem cada ano certos casais e moradores que as povoem e cultivem, e para isso se lhes concedem as terras com direitos e rendas e amplíssima jurisdição» (6).
Constituídas as capitanias com base em doações de bens da Coroa, estas regiam-se por princípios específicos consignados nas Ordenações que diferenciavam o seu regi- me, relativamente a doações de bens particulares que têm como características essenciais a transferência e a aquisição perfeitas do domínio.
Pascoal José de Melo Freire notava que a doação destes bens não se fazia por mera liberalidade, salientando que a sua natureza «é sempre remuneratória, e atende, para todo o sempre, aos bons serviços do donatário e seus sucessores. Não sendo o Rei senhor mas administrador dos bens públi- cos[...]» (7).
O mesmo autor, caracterizando esse tipo de doações, frisava que se não estão os bens públicos em seu domínio e propriedade, «estão certamente em seu império e adminis- tração; eis por que poderá dispor deles para o bem comum da nação, que resulta da justa e necessária distribuição dos prémios» (8).
NOTAS
(1) António M. Hespanha, História das Instituições. Épocas medieval e mo- derna, Coimbra, Almedina, 1982, p. 140, n.o 240, apud António Vas- concelos de Saldanha, As Capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvol- vimento e extinção de um fenómeno do Atlântico, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 54.
(2) A. M. Hespanha, op.cit., p. 163, apud Idem, Ibidem.
(3) Idem, Ibidem, p. 138, n.o 216, apud Idem, Ibidem.
(4) Salvador de Moxó, La Dissolución del régímen señorial en España, Ma- drid, Escuela de Historia Moderna, 1965, p. 44, apud António Vascon- celos de Saldanha, op.cit., p. 55.
(5) António Vasconcelos de Saldanha, op.cit., p. 96.
(6) BNP, Res., códice 7627, fl. 41, apud A. Vasconcelos de Saldanha, op.cit,
p. 96.
(7) Pascoal José de Melo Freire, «Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular», §XXVIII do tít. III do Livro II, reed. in Boletim do Ministério da Justiça, n.o 163, Fevereiro, 1967, p. 59, apud Idem, Ibidem, p. 56.
(8) Idem, Ibidem, §XX do tít. III do Livro II, reed. in Boletim do Ministério da Justiça, n.o 163, Fevereiro, 1967, p. 50, apud Idem, Ibidem.
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