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CróniCaS
NOVAs FOrMAs rENAsCErÃO DO CAOs
Aconvite de antigos camaradas da Marinha, participei do almoço de aniversário dos cem anos de um vice- -almirante, um homem do seu tempo durante o Estado Novo, que exerceu funções de Adido Militar junto da Embaixada de Portugal em Washington, foi meu coman- dante da fragata na guerra colonial em Moçambique (a “NPr Pacheco Pereira” de que desertei há mais de meio século e não existe há muitos anos, foi “abatida” e repousa no fundo do oceano) e, depois da revolução de 25 de Abril, Alto-Comissário para a independência de Cabo Verde. O al- moço foi agradável com cerca de trinta pessoas, os seus três filhos, o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (atualmente um almirante que podia, pela sua idade, ser neto do homenageado) e os oficiais da antiga fragata, entre outros. lembrámos a saída do navio do porto de lisboa, em fins de 1967, com as mulheres no cais agarradas a lenços a chorar e a acenar para maridos e filhos, a paragem em são Vicente (Cabo Verde) para abastecer, a avaria nas máquinas a sul da Guiné sem porto para nos abrigarmos (os países costeiros próximos eram inimigos políticos de Portugal), “mais um Favaios, se faz favor. Os croquetes estão muito bons”, a paragem em luanda para reabastecer e reparar a máquina do navio, a travessia do Cabo da Boa Esperança com um mar que invadia o convés, a chegada a lourenço Marques, a viagem para a nossa base na cidade da Beira, onde entre outras tarefas fiscalizávamos os movimentos de fragatas inglesas no limite das nossas águas territoriais que asseguravam o boicote às importações destinadas à rodé- sia de Ian smith (que decretou a independência unilateral de um regime racista, aliado de Portugal), a minha deserção e a carta que enviei de Paris, “os croquetes estão ótimos”, disse o antigo imediato do navio, agora com noventa e dois anos. uma senhora de meia idade manobrava entre os con- vidados do almoço a cadeira de rodas do homenageado, vigiava-o com dedicação e foi publicamente saudada pelos seus trabalhos de acompanhante e enfermeira pessoal do casal. O nosso almirante com cem anos (é diferente de fazer noventa e nove ou cento e um anos, a importância dos nú- meros redondos, penso) mantém-se lúcido. Fez um século, acompanhou cinco por cento dos vinte séculos desde a fundação da nossa cultura judaico-cristã. E ocorre-me, ain- da contemporâneo do diplomata alemão Harry Kessler (1868-1937), autor do livro de memórias “O sentimento de uma nova era” que li recentemente. Com a diferença de que este viveu no centro da Europa (Inglaterra e Alemanha) de então e o nosso almirante nas malhas de uma ditadura tar- dia da periferia do continente, enfrentando questões colo-
Jacinto rego de Almeida
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niais e, muito mais tarde, uma revolução libertária. O caos transformador dominou grande parte do século XX, enfim... “cada caos é diferente de outros caos, mas novas formas re- nascerão”, disse um dos convidados do almoço sentado perto de mim. O homem ao seu lado, com muita calma, pe- diu para ele repetir, “não ouço bem”, e com a mão salientou um dos ouvidos. Após a repetição, fez um leve gesto de concordância. E o nosso almirante a presenciar um virar de página do renascer de uma nova era nestes primeiros anos do século XXI, pensei.
Há cem anos ninguém poderia imaginar a China como grande potência, as estreitas relações entre os E.u.A. e a rússia, ou melhor, a estranha intimidade entre os presiden- tes dos dois países, a democracia madura da velha Europa a ser assaltada pelo populismo, antigas amantes do presi- dente dos E.u.A. (algumas nas franjas da prostituição) a des- filarem alegremente pelos noticiários das nossas televi- sões... “está um caos”, disse um convidado do almoço.
E lembrei-me do diário do Conde Harry Kessler, iniciado em 1880. Depois de participar durante dois anos na I Guerra Mundial, tornou-se diplomata e foi conhecido pelo “conde vermelho” na república Weimar (1918-1933) pelas suas po- sições próximas à social democracia. A fortuna herdada do seu pai banqueiro foi perdida na Crise de 1929 (também “um caos”). No seu diário de 1913, enquanto Portugal vivia a I república, poucos anos antes da revolução russa e do início da I Guerra Mundial (o nosso almirante tinha apenas cinco anos), Kessler narra o pequeno almoço do seu amigo George Bernard shaw na Embaixada da Alemanha em lon- dres em que o escritor britânico aconselha: “preparar uma nova tríplice aliança entre Alemanha, Inglaterra e França e fazer disso a base para a paz mundial.” Face ao sorriso do Embaixador, shaw ponderou: “então que se faça um acordo (entre os três países) segundo o qual se a Alemanha atacar a França, a Inglaterra apoiará a França e se a França atacar a Alemanha, a Inglaterra estará do lado da Alemanha”. Troca- vam-se opiniões casuais sobre o grande caos que se avizi- nhava. Em outra parte do diário descreve um jantar na Em- baixada com a presença do rei George VI e da rainha Mary. Esta vestida de brocado de prata, coroa com diamantes e turquesas e refere que o rei “cativa as pessoas com gentileza e banalidades despretensiosas, mas as suas palavras não possuem nenhum brilho”. Fala-se de Edgar Degas e Pierre- -Auguste renoir “reacionários inconformados” com a uni- versalização do ensino primário na França, comenta-se so- bre Picasso... enfim conversas de salão, frivolidades, com a
8 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • Julho-Setembro 2018