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Cultura E ConhECimEnto
A “QUESTÃO DO ROSMANINHAL”
ou “GuErrA Dos AlArEs”
(ou A HistÓriA DEsconHEciDA DE umA «mini-GuErrA CIVIL» NOS CONFINS DA BEIRA BAIXA, ENTRE 1923 E 1930) PARTE 2 (CONTINUAÇÃO DO NÚMERO ANTERIOR)
José António dos santos Pinheirinho
19640229
Despeitados, os gananciosos advogados (do dito “sin- dicato político-financeiro”) intensificaram a questão judicial e incitaram os “monteses” a opor-se, pela vio- lência, à fruição que ia ser dada aos novos proprietários. Fica- ram, pois, em campo os habitantes das três antigas herdades – Alares, Cobeira e Cegonhas (Velhas) – e os do Rosmaninhal, resistindo os primeiros activamente à posse dos compradores. A partir do dia 7 de Outubro de 1923, e por largos meses, a luta pela posse dos terrenos da discórdia, alimentada pelo crescente ódio mortal entre as partes desavindas, tornou-se terrível. os campos foram devastados, os gados roubados e mortos, as searas pilhadas e incendiadas. reinava a anarquia e o terror, entre os povos que se atacavam e se defendiam a tiro, à paulada e à pedrada. impossibilitados de enterrar os seus mortos no rosmaninhal, os “monteses” vão fazê-lo ao Ladoeiro (que dista 20km do Rosmaninhal), como mostram os livros de assentos desta paróquia.
Em certa altura, decorria já o ano de 1925, o povo do Ros- maninhal recorreu à justiça, a requerer a posse judicial dos terrenos que havia adquirido, por escritura, em 1923. O juiz, Dr. leal Pavão, deferiu o pedido e deu posse ao povo do rosmaninhal. rezam as crónicas que, nesse mesmo dia, os ros- maninhenses armados de picaretas, alavancas e outros instru- mentos, se dirigiram em massa para os Alares, intimidando os seus habitantes a entregarem-lhes as terras da discórdia. Pe- rante a recusa dos “monteses” devastaram colheitas e hortas, estragaram searas, inutilizaram alfais agrícolas, incendiaram palhas para os gados, destruíram inúmeras colmeias; mataram à fouçada ovelhas (chegando a esfolar algumas ainda vivas), entraram à força nas casas e escaqueiraram os potes cheios de mel; derrubaram paredes e telhados, desfizeram o tecto do forno colectivo dos Alares e agrediram indiscriminadamente homens e mulheres (novos e velhos). Em suma, arrasaram a povoação. igual devastação foi feita em cobeira e, na manhã seguinte, em Cegonhas (Velhas). Além dos prejuízos materiais incalculáveis, consta que na refrega terá havido uma vítima mortal – um homem da cobeira. Perante este cenário de «mi- ni-guerra civil» a Guarda Nacional Republicana (GNR) viu-se impotente para controlar os acontecimentos, não se livrando da fama de ter alinhado ao lado dos rosmaninhenses.
nas semanas seguintes àquelas vagas de assalto e des- truição, as populações dos Alares, cobeira e cegonhas (as Velhas) teimaram em não largar as suas casas e terras, apesar do permanente clima de provocação e intimidação. contu- do, com o passar do tempo, a derrota apresentava-se cada vez mais clara e optaram por partir. o êxodo teve início há mais de 92 anos, em 29 de Junho de 1925, dia de São Pedro, reunindo-se as gentes dos Alares no lugar da herdade da raiz, onde levantaram uma nova povoação, as soalheiras. A população das Cegonhas (Velhas) deslocou-se para a actual povoação das Cegonhas (Novas). Por sua vez, Manuel Correia
e sua irmã, maria Xârez, juntamente com os seus dez filhos: cinco rapazes de cada um, fixaram-se no couto que haviam comprado alguns anos antes da “Guerra”, dando assim ori- gem à povoação do couto dos correias. o povo da cobeira migrou quase todo para monforte da Beira e o restante di- luiu-se nas Soalheiras e nas Cegonhas (Novas).
na sequência das notícias da imprensa e das denúncias públicas dos representantes dos povos em litígio, a «Questão do rosmaninhal» acabou por ser debatida no Parlamento, ao longo de diversas sessões.
nesses debates, os oradores serviram-se fundamental- mente das notícias relatadas pela imprensa da época, para exigir esclarecimentos aos governantes. Apesar da falta de rigor nalgumas intervenções dos deputados, as mesmas fo- ram seguidas atentamente nas galerias da sala do Parlamen- to pelos jornalistas do jornal “A Batalha”, que ao longo de dois anos extraíram das Actas das sessões da câmara de Deputa- dos o essencial desses debates, para memória futura.
No final do ano de 1925, à medida que Mário Castelhano, o redactor-principal de “A Batalha”, lia as intervenções dos Deputados sobre a “Questão do Rosmaninhal”, mais se con- vencia que os políticos jamais tiveram qualquer vontade, nem autoridade moral, para acabar com o conflito dos mon- tes. Apenas aqui e ali, sem qualquer urgência, rompiam com o silêncio que envolvia aquela tragédia. Para muitos dos de- putados a política era um campo fértil de compensações e a resolução da “Questão do Rosmaninhal” não os compensa- va... em nada.
mais do que abordar o assunto de forma leviana, a câma- ra dos Deputados tinha a obrigação de revelar a dor dos po- vos, que viriam a ser expulsos dos Alares, cobeira e cego- nhas – sem que alguém ficasse a lamentar a sua partida.
como redactor-principal de um jornal diário, que se defi- nia como firme defensor dos direitos dos trabalhadores e porta-voz da necessidade da revolução social, que defendia a instauração de uma nova sociedade sem exploração nem opressão, ao reler as Actas das sessões, mário castelhano compreendeu que todo e qualquer jornalista se debate com um conflito interno: a escolha entre ser fiel às convicções e o instinto de sobrevivência. no seu caso, congratulou-se por ser fiel ao seu amor pela verdade, ao admitir que o jornal “A Batalha” errara ao defender a adjudicação dos terrenos do montes aos seus possuidores, com prejuízo dos proprietá- rios. Porém, mais do que noticiar a verdade, ele também de- fendia que a imprensa tem igualmente a obrigação de reve- lar a dor dos que sofrem.
E foi mergulhado nesses pensamentos que mário caste- lhano releu as Actas das sessões da câmara de Deputados, versando a «Questão do Rosmaninhal, apresentando-se ape- nas uma delas, a saber:
(continua no próximo número)
8 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • Janeiro-Março 2018