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Anexo do Boletim 273 Ano 78
ABRIL A JUNHO DE 2024
O sofrimento é talvez a constante da vida mais conhecida e menos compreendida da Humanidade. Primo Levi relata o seu sofrimento, porém não fala neste documento, co- mo de resto em praticamente toda a sua obra, dos momentos que viveu nas montanhas à exceção do seu conto Fine del Marinese.
O Inferno Segundo o Autor
Para Levi, o “Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dú- vida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada.” O vazio na expetativa constante de um brutal, indescritível, violento, medonho e aterrador resultado. A ansie- dade avassaladora.
A nudez total e por fim a perda dos documentos e dos sapatos, esse resquício de ligação ao mundo exterior que medeia entre a fortuna e a indigência e depois vem o corte do ca- belo até ao momento em que se deixa de ser e se fica algarismo: bate-se no fundo.
Isto é o início da história, um processo em que será posto à prova de forma consistente e constante durante o cativeiro. A fome permanente é enganada com uma dose diária de aguadilha; o cansaço do trabalho queima a energia total, não há desperdícios, para se lançar para cima do arame farpado eletrificado e pôr termo à vida, nem faz sentido na azafama da vida diária; o medo da brutalidade e da violência inusitada paralisam. Há um pesadelo constante que liga à vida e permite a sobrevivência: não permitir furtos da co- lher, da marmita ou ficar sem os socos ajustados aos pés.
Mas há algo para além disto: o mercado negro em que tudo tem um preço. A Ética e Sobrevivência confundem-se: a espe- rança de chegar à primavera, ao dia se- guinte, até à próxima sopa. Há um senti- do para a vida: viver com as circunstân- cias, o que nos conduz à natureza pró- pria do Homem e ao seu valor.
Mas no meio desta realidade desconcer- tante há um ombro amigo, um outro soli- dário com quem se trocam palavras e olhares cúmplices, com quem se divide o peso das cargas; há a heroicidade e bondade de alguém que generosamente partilha a sua pequena porção de pão com Levi. Enfim toda a nuvem esconde o Sol, mas este, a espaços mostra-se. Portanto, Primo Levi foi mártir no sentido em que diariamente se aniquilou um pouco mais. Porém, não foi o primeiro nem será o último a sofrer esta condição às mãos do Homem Universal.
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