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EM FOCO APE
14 BOLETIM APE | JUL/SET 2023
conhecidos pelos “mijões” e tinham uma lista vermelha por
cima do número, na cama, para o guarda-nocturno os acor-
dar durante a noite e irem vazar águas.
Foi lá na olaria que alguns tiveram o primeiro contacto
com a luz eléctrica, com os esgotos e água canalizada, o tomar
banho de água quente debaixo de um chuveiro duas vezes por
semana, o que para alguns como eu, era um luxo das arábias.
Feitas as ablações matinais vestíamos a farda de cotim e
às seis e meia já estávamos na sala de estudo, a antecâmara
da olaria propriamente dita. Toda a malta em silêncio a fazer
que estava a estudar, quem abria o bico levava logo um es-
talo nas ventas para aprender a estar calado.
Quem tomava conta de nós, fora das oficinas dos
mestres oleiros, eram os graduados, umas boas peças.
Já estavam na olaria a ser moldados há alguns anos,
estavam quase acabados e prontos para serem lançados
no mercado, eram os nossos mestres no dia-a-dia da vida
interna na olaria.
Às sete e meia, toca de correr para o refeitório, comer
pão com manteiga e uma chávena de café com leite,
durante dez anos comi pão com manteiga e bebi café com
leite todos os dias, ainda odeio pão com manteiga e café
com leite. Em dias de festa davam marmelada e cacau.
Deglutido aquele manjar, lá ia o barro todo em passo
de corrida para a formatura da manhã, as oficinas da olaria
começavam às oito da manhã a amassar o barro, e lá ia
aquela malta toda em formatura a marchar pela estrada de
Benfica e a empatar o trânsito.
O meu comandante de pelotão era uma boa peça…
andava sempre mal-disposto, parecia que todo o mundo
lhe devia e ninguém lhe pagava, claro que quem lhe pagava
as más disposições eram os putos como eu, levava caldos
e carolos por tudo e por nada, era do género “preso por
ter cão e preso por não o ter”. Aguentámos aquela peça
durante um ano.
O dia era todo feito a correr, oito horas de olaria diárias,
das oito da manhã de segunda-feira até às seis da tarde
de sábado, formaturas para todas as entradas nas oficinas
dos mestres, tempo de estudo obrigatório e um pequeno
intervalo para brincar, entre as oito e meia e as nove e meia
da noite. Às nove e meia havia o chá, uma carcaça com
marmelada e uma chávena de chá quente para aconchegar
o estômago e enganar a fome…eu andava sempre com
fome…e quando bebia muito chá acordava molhado.
Lá na olaria todos tinham um número, eu era o um seis
nove, e quase todos tinham uma alcunha, algumas ainda
me lembro como o “Cara Alegre” o “Barrigas” o “Pira”
o “Nhaco” o meu grande amigo “Pinguim” o “La mula”,
o “Uva”, o “Terrível” o “Zé das Porcas”, o “Caveira” e o
“Solista”…
Os mestres oleiros eram umas boas peças, salvo
honrosas excepções, não tinham jeito nenhum para
trabalharem o barro em bruto que lhes punham nas mãos,
mas lá nos iam amassando o melhor que sabiam e eram
capazes.
Lembro-me de quase todos em geral, e de alguns em
particular.
Os mestres oleiros de Português eram uma desgraça, o
primeiro que tive foi o “Tipóia” a seguir veio o “Panaças”
e depois o “Rabeca”, o último foi o “Amélia”, este sim,
um bom mestre, mas já chegou tarde, a malta não sabia
nada de modo que o senhor um dia desabafou e disse-nos:
“meus senhores eu só quero que vocês aprendam a ler e a
interpretar, quem quiser ser escritor vá para a universida-
de…eu não fui”.
Outros de que me lembro bem foram os mestres oleiros
de Francês, o primeiro foi o “Pêssego”, sabia menos que
nós, as frases eram metade em francês e o resto em portu-
guês, ainda o estou a ouvir “ó eleve lá bá, feche la fenetre”.
A seguir tive o Galhardo, dava uma aula e faltava duas, far-
tei-me de aprender coisa nenhuma com ele. Por último tive
o “Chesman”, um bom mestre, mas a malta é que não sabia
nada e já era tarde para aprender.
A Matemática era outro descalabro, já nem me lembro
bem do primeiro mestre, era um artilheiro, Dias qualquer
coisa, chumbou-me no segundo ano, na prova oral, só
porque não respondi a uma pergunta, tive de voltar para
o início da linha…mas lembro-me bem do segundo, era
outro artilheiro, o “Antas”, que tive de “gramar cinco
anos seguidos. Só sabia fazer chamadas e corria a malta
com setes e oitos. Só chamava a malta que tinha negativa
nos pontos, e à primeira asneira mandava-nos sentar. Eu
fartava-me de estudar e só tinha negas, fui sempre a exame
cortado a matemática, e fui sempre à oral com negativa, na
oral passei sempre. Na última oral, depois de ter respondido
a tudo e feito “n+1” demonstrações, diz-me assim: Afinal
tu sabes muita matemática, porque é que tiveste sempre
negativas? Ao que lhe respondi… porque nunca lhe
consegui demonstrar os meus conhecimentos, meu Major.
A Física e Química era outro artilheiro, “Crrâneo”, o
homem até era um bom professor, mas não dava as lições
de modo clássico, mandava a malta estudar, dizia assim: no
próximo dia há chamadas estudem da “página tal à página
tal” … e depois fazia chamadas. O desgraçado que ia ao
quadro servia de cobaia, à medida que ia demonstrando
a sua ignorância na matéria, o Crrâneo ia explicando, e a
malta aprendendo. No fim sentava-se, normalmente com
um oito na caderneta.
O mestre que mais detestei foi um que se vestia de
negro, a malta chamava-lhe o “Corvo”, como nunca lhe
beijei a mão, tomou-me de ponta e nunca nos entendemos.
E assim passei dez anos na olaria, duas vezes vim para o
início da linha, a amassadela não estava perfeita e voltava
a ser amassado.
Não sei se saí uma grande peça, mas lá me tenho safo…
de tanto ser amassado, alguma coisa resultou.
Tenho saudades de todos os meus mestres, sei que
lhes dei muito trabalho, que fiz muitas tropelias e algumas
patifarias … mas, sem a sua paciência eu não seria o que
sou hoje. Tenho para com todos uma dívida de gratidão.