Page 9 - Boletim APE 269
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Os rapazes, volto a pensar neles... desta vez sem os compreender, confesso. Não os visualizo, apesar de muito tentar. Imagino manchas verdes acinzentadas que ensacam os seus corpos tenros ainda a salvo de certos dentes que para sempre se afiam... Oh, os rapazes, os meus. Onde andarão eles hoje? Para mim, continuam naqueles anos cada vez mais afastados, de sorriso rasgado a fugir da mão grande que lhes escondia docilmente o mundo lá fora. O mundo lá fora, penso nisto. Chegaria a haver um mundo lá fora? Claro que sim, é onde devem estar agora os rapazes, como eu. Avulsos numa existência dita normal, entre trabalhos raramente bem pagos e tempo sempre escasso. Será que têm noção que ainda os imagino com pouco mais de um metro e pouco? Não devem ter e mal não há em assim ser. Isto acontece em mim, num recanto qualquer que se acirra sempre que os espelhos decidem cobrar-me os anos: largo o presente e corro, desajeitado interior adentro, rumo àqueles tempos. Ó rapazes! Voltem ali comigo. Estiquem os braços, senão uma chuva de estrelas não nos largará. Levantem a cabeça e os joelhos como se no céu estivesse o alvo, porque está, de facto. E diga-se, dificilmente algum dia irão reencontrar um céu daqueles, que nos vigiava interruptamente, para lá da mão grande que nos tirava fim de semanas, por vezes, mas noutras, nos apresentava a existência colectiva num mundo iminentemente singular. Que existência? Só penso na passada, a que não volta e poucas vezes ainda existe, hoje. Onde andarão os rapazes, é a pergunta ecoante que me persegue e me lança à parede como um dedo nunca dobrado que só aponta, cada vez mais perto da minha cara atrapalhada. Onde andarão, afinal?! Perdidos lá fora, sei! Mas porquê? Tudo ainda existe na velhinha casa azul. Os portões lampejam alma, ainda que por meio de sapatos pretos muito brilhantes com solas devoradas pelo mesmo chão que nos lançou vida fora. Ó rapazes, vocês sim bem fizeram em logo perceber que o mundo lá dentro, à nossa saída, passara imediatamente a pertencer a outros que só então nele entraram e um dia, como nós, sairão da mesma maneira: de corpo para a frente, mas cabeça para trás! Mundo
CRÓNICAS
BOLETIM APE | ABR/JUN 2023
servente? Provavelmente. Um mundo que tudo dá a quem chega e tudo leva a quem se foi. Um mundo que carrega em si centenas de corações singulares destinados a cada jovem rapaz que ali arrisque entrar. É isto, talvez seja mesmo isto! O mundo, à nossa entrada, e enquanto naquele momento se deu, decidiu cravar-nos, sorrateiro, um coração individual e sem igual, mas eternamente seu que décadas adentro soltará memórias antigas, umas vividas e outras simplesmente desejadas da vida, no entanto, todas criadas ao longo dos onze meses que encurralam Maio, onde são precisamente partilhadas e festejadas, da forma mais dura que talvez exista: a abnegação na existência quotidiana em prol duma eternidade utópica sabida como quase nula. Ó meus rapazes, o exigido sempre foi de uma dimensão tão grande, de uma dificuldade herculeamente difícil, e, mesmo assim, volto a ver o sorriso a espreguiçar-se-vos no rosto. Nada abala estes miúdos de metro e pouco. E se assim é de facto, nada mais o justifica que os onze meses que encurralam Maio, duros e pesados, servirem perpetuamente, com sucesso, esse mesmo propósito: da saudade desenhar o amor mais profundo; da dificuldade encontrar o mecanismo do mundo; e da união, a seu tempo, perceber de onde o Homem é oriundo. Ó rapazes a irromper do tal horizonte de pedra azul como ouro selvagem a despertar! Estes onze meses austeros, mas a seu tempo gratificantes, irão exclusivamente polir-vos ainda mais, de uma forma mansamente bravia, ao ponto de, no quinto mês, no mês das nossas vidas, ser possível uma briosa exibição da obra-prima em que tudo o mais resultou. Romantismo meu, sei. Ou talvez nem tanto. Afinal, olhem lá para os rapazes ali longe, atrapalhados de atacadores soltos e de fardas docilmente mal abotoadas, e agora olhem para esses mesmos rapazes cá perto, num momento presente solto do passado, homens feitos de vidas ganhas e corações cheios. Aí os duros onze meses que podiam facilmente resumir-se, se esta crónica tivesse limite máximo de três palavras e os leitores menos uma maçada em cima, ao seguinte: Querer é Poder.
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