Page 40 - Boletim numero 261 da APE
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EVOCAÇÕES
Raparigas
Bem Formadas
Ao lado do edifício dos Pupilos do Exército situava- -se o edifício do Instituto de S. Domingos de Benfi- ca, um internato para raparigas pobres ou proble- máticas. Separados por um muro alto coroado com peda- ços de vidro embutidos na parte superior, os dois organis- mos viviam sem qualquer contacto entre si, em função de rigorosas ordens expressas de proibição recíproca.
Do nosso lado, encostado a esse muro, encontrava-se o antigo curral das mulas. Subindo ao seu telhado tínhamos uma ampla visão das instalações e movimentações femi- ninas.
Perto do muro, era frequente ouvirem-se os gritos das raparigas durante os recreios. Certo dia, perto do final do mês de Junho de 1971, eu e o Salvador, um ano mais novo, ouvimo-los e trepámos ao telhado do curral.
Passado pouco tempo, quatro raparigas acercaram-- se cuidadosamente do muro e esconderam-se na vegeta- ção do pequeno jardim fronteiro. Trocámos cumprimentos, informações e planos e combinámos encontrar-nos à meia- -noite... nesse local.
E assim aconteceu. O mais difícil foi movimentarmo-nos por entre os pedaços de vidro, de modo a termos apoio su- ficiente para pularmos para o jardim embaixo, dificuldade acrescida para o trajecto inverso.
Outros encontros se seguiram e a superioridade numé- rica feminina começou a tornar-se constrangedora. Era pre- ciso escolher duas delas, o que não se adivinhava tarefa fácil, pois já tínhamos percebido que uma grande amizade as ligava e que uma fractura no grupo não devia ser bem recebida.
Mesmo assim resolvemos arriscar. Escolhi a Teresa e o Salvador [se bem me lembro] a que escolheu para si chama- va-se Isabel. Para surpresa nossa, afinal tudo correu bem.
Pelo meio desses encontros, às vezes aparecíamos de dia no telhado do curral, continuando a comparecer as qua- tro como boas amigas, sinal de que se haviam entendido quanto aos encontros nocturnos.
Num destes dias, quando se esgueiravam para o jardim, uma miúda de uns oito anos seguiu-as escondida pelas plan- tas. Tínhamos sido descobertos por uma criança pelo que a sua idade não garantia segredo.
Entre nós, resolvemos interromper todos os encontros, mas já era tarde. Uns dias depois, o nosso Director fez pas- sar a ordem para que os dois infractores se acusassem, o que fizemos prontamente.
Em resultado, fomos punidos com a pena de separação (uma espécie de prisão): sete dias para mim e um ou dois dias a menos para o Salvador, por ser mais novo.
Por sorte, a pena de separação já tinha sido aliviada da “carecada” (corte de cabelo rente) e mais suavizada no seu cumprimento. Por exemplo, podia-se frequentar a piscina, o que aproveitei todos os dias.
BOLETIM APE | ABR/JUN 2021
Vieram as férias grandes e, considerando que estava isento de todas as obrigações militares, arranjei uma alter- nativa tosca para continuar a contactar o grupo de amigas. O Instituto de S. Domingos de Benfica tinha um portão me- tálico no muro do lado da linha do comboio, que nunca era utilizado. Entre as paredes do muro e os lados do portão existiam uns centímetros de intervalo devido às dobradi- ças, por onde era possível ver e falar. Então, as raparigas sentavam-se por perto no lado de dentro e eu por perto no lado de fora.
Num desses encontros aproximou-se uma loira do gru- po e, assumindo que fôramos mais uma vez descobertos, terminámos definitivamente com os encontros.
Passados uns anos, após o cumprimento do serviço mili- tar obrigatório, estacionei o meu Mini vermelho à frente do portão principal do Instituto de S. Domingos de Benfica.
Tinha em mente pedir os contactos possíveis das rapari- gas, particularmente o da Teresa, esperando ser mal recebi- do por ter desassossegado a instituição.
Ao meu chamamento respondeu uma funcionária ainda nova e, surpreendentemente, quando me identifiquei e re- velei o que pretendia, a senhora manifestou muita satisfa- ção por me conhecer. Informou que a Directora não se en- contrava presente, mas que iria prontamente chamar a Subdirectora.
Muito animado com esta recepção auspiciosa, aguardei tranquilamente. Pouco depois, a empregada surgiu com uma senhora idosa bem-disposta, que me perguntou se era o proprietário do automóvel estacionado. Como respondi afirmativamente, pediu que nos sentássemos no seu inte- rior, para falarmos à vontade.
Começando por se mostrar maravilhada por eu ter regressado legalmente à instituição, foi dando informa- ções sobre o que se despoletara após a denúncia. As rapa- rigas foram “apertadas” de todas as formas possíveis para nos identificarem, designadamente interrogatórios agres- sivos, restrições alimentares, privações de liberdade e pro- messas de castigos severos. A tudo resistiram, com tanto denodo, que convenceram a comunidade de que éramos muito valiosos e tudo fariam para não sermos prejudica- dos. E daí resultou que o caso se tenha convertido num idí- lico romance.
Quanto à minha pretensão, não foi possível satisfazê-la, pois as raparigas tinham que sair aos 18 anos e não conser- vavam os contactos, o que me surpreendeu desfavoravel- mente. A senhora despediu-se com carinho, oferecendo o seu último sorriso, e deixando-me desconsolado...
Passados mais uns anos, lembrei-me que o Salvador tinha direito a conhecer o epílogo do assunto e descrevi-lhe por E-mail o que se passara naquele retorno ao nosso vizinho in- ternato. Respondeu-me laconicamente, pelo mesmo meio, de que se recordava do assunto e pouco mais adiantou.
José Lopes
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