Page 4 - Anexo do Boletim numero 254 da APE
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Fundos Éticos e Religião
Há quase 3000 anos que o Judaísmo estabelecia no oitavo dos Dez Mandamentos, a máxima que hoje nos parece quase-inata ao humano: “não roubarás”. Esta máxima era acompanhada com outros trechos de humanismo e de apoio social um pouco por toda a Torá, escrita há cerca de 2.500 anos. Dizia-se, por exemplo, que o credor, não só não deve levar como penhor as ferramentas do sustento do devedor, como, se for necessário, lhe deve dar guarida e alimento em caso de necessidade! (Levítico 25, 35). O centro deste pensamento era, mais que uma atitude caritativa, a visão de que apenas pelo investimento, mesmo em quem estava falido, se poderia vir a lucrar posteriormente:
Se um dos teus irmãos empobrecer, e não satisfizer as suas obrigações para contigo, protegê-lo-ás, mesmo que seja um estrangeiro ou um inquilino, e deixa-o viver contigo. Não receberás dele juros nem lucro algum, mas teme o teu Deus para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestes o teu dinheiro com juros, nem lhe dês os teus mantimentos para disso tirar proveito.
O Cristianismo da época de Tomás de Aquino via com muito maus olhos o empréstimo a juro, aliando-se ao Islão. Mas o Cristianismo Reformado do séc. XVI criaria uma ética do trabalho totalmente dinâmica com Lutero e, com Calvino, aproximava-se do Judaísmo dizendo que a obtenção de riqueza era uma imagem, possibilitada por Deus, da salvação futura. Neste campo teológico, se a riqueza era uma dádiva de Deus, ela tinha que se pautar por formas de gestão que em nada beliscassem essa ligação à divindade.
Foram milénios de apuramento da preocupação social e de justificação ética. Contudo, hoje parece que estamos novamente a procurar formas de regulação para um sistema que há muito deve ter esquecido o sentido de algo a que se possa designar por Ética. Começamos a falar dos chamados Fundos Éticos: investimento em empresas cujos produtos ou operações sejam considerados benéficos para a sociedade. Um inquérito realizado já em 2006 pela PricewaterhouseCoopers a 81 sociedades gestoras de todo o mundo indicava que muitas tencionavam aumentar a sua oferta em Fundos Éticos. Esta alternativa aos produtos mais tradicionais permitiria aos investidores estar menos dependentes da evolução dos mercados financeiros - estes valores foram suplantados. Contudo, mesmo com esta predisposição, o caminho resultou na crise financeira e económica que ainda hoje nos marca.
No Islão, a cobrança de juro só é legítima, quando há algum motivo de risco exterior ao crédito – isto é, o risco de perda da quantia emprestada. Como se cruza este princípio com a prática financeira?
A partir de meados da década de 50 do século XX, os economistas e juristas islâmicos estudaram a abolição da taxa de juros através da criação de uma instituição
financeira compatível com a sharia. Na Malásia, por exemplo, foi criado um fundo com as dádivas dos crentes para as peregrinações a Meca. A gestão desse fundo, segundo rigorosos princípios éticos, possibilitava a mecânica do empréstimo e da gestão do risco, aliando ainda à prática em tudo bancária um segundo princípio do Islão, a zakat, ou seja, a ajuda obrigatória aos pobres, deduzida do lucro e do património.
Mais recentemente, surgiram fundos de investimento, chamados limpos, que vão a outro campo importante das esferas reguladoras: as actividades económicas onde qualquer um de nós não gostaria de ver o seu dinheiro... a produção e a distribuição de armas, o comércio do tabaco, álcool, pornografia e jogos de azar. De facto, estas actividades são proibidas pelo Corão e há já respostas dos mercados para os clientes que querem ter a certeza de que o seu dinheiro não será usado para estes fins.
Ora, num sentido mais ético, ligado a uma ideia de responsabilidade civil e social ou num campo mais moral, onde o factor religioso se torna mais claro, a verdade é que temos, no Ocidente, muitas heranças por onde navegar em busca de bóias éticas.
Para crentes e para não crentes, há um campo de sabedoria, de saberes cimentados por milhares de anos de gestão de sociedade que levou a que se criassem certas regras e certos preceitos éticos que não são pura retórica encantatória. São respostas pragmáticas que conduzem a um bem comum.
E este conjunto de saberes, mais que Religião, é Património da Humanidade. Falta às entidades portuguesas perceber que a localização mental da nossa cultura, em linhas de confluência e de fronteira, é a localização física ideal para instituições que ofereçam produtos financeiros de alto rigor ético e grande transparência de gestão. Não digo que Portugal pudesse ser uma nova Suíça, agora num outro paradigma cada vez mais procurado, mas poderia jogar passos importantes nesse tabuleiro.
---------------------------- Paulo Mendes Pinto 19810353
4 | Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro