Page 6 - Anexo do Boletim 253 da APE
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  PALAVRAS SOLTAS
  Em viagem...
Depois de ter ignorado a beleza das paisagens por onde passava, aquela que há três anos o tinha deslumbrado e que se tornou transparente pela rotina da vida, parou o carro no lugar de sempre, apertou os botões do sobretudo, levantou a gola e saiu de mãos atadas pelos bolsos, rumo à porta do calvário, desarrumando o chão que pisava, até vencer os três ou quatro degraus graníticos, tão gélidos e solitários quanto o seu caminho. Tudo igual: cenário a preto e branco, árvores nuas de Inverno, olhar inconformadamente conformado com o facto de ter que ser e o pensar, como um grito de Ipiranga adormecido:
- Mas que raio é que eu faço aqui? Sou um animal tropical, "porra"! Não tenho férias há um século!
Um pé no último degrau e, sem surpresa, a abertura das portas de vidro e um sonoro: - Bonjour, Monsieur! Preparado à distância pelo senhor Rodriguez, defensor da base da torre, aberta em vidros sobre tudo o que a rodeava e que lhe permitia premeditar tréguas efémeras à sua solidão.
Cem metros quadrados de chão imaculado, pedra fria até na cor e, a um canto, um jogo de sofás, quase sempre vazio, sobre um tapete que, de generosidade, só tinha a dimensão e um logótipo, vermelho vivo, perfeitamente enquadrado com a morbidez da parca pilha de revistas, trocadas semanalmente sem terem tido o privilégio de um único olhar.
Junto aos elevadores e à porta de acesso às escadas de emergência, o balcão do recepcionista, da cor do tapete e tão ávido de confusão quanto a mesa de apoio aos lugares de espera, cedia um milésimo do seu tampo a um porta canetas, quase esquecidas, e a uma caixa com cartões de visitante, perfilados, ansiosos por darem lugar a um documento de identificação qualquer. Ao lado da cadeira, sempre irrepreensível na sua indumentária, o espanhol grisalho que, meses mais tarde, numa troca de palavras provocada pela rara espera de um ascensor, me confessou ser um homem de sorte por ter conseguido, há quarenta anos, dar o salto do seu país e agora, de há uns oito para cá, ter ascendido a um cargo tão digno. Momento a partir do qual, cometemos a leviandade de nos saudarmos, alternadamente, nas nossas línguas e lhe pude fazer esboçar um sorriso todas as manhãs.
Depois do "bip", mais uma exclamação do Sr. Rodrigues:
- Bonne Journée, Monsieur! (Coincidente com o fechar de portas e a pressão do botão que me levava ao segundo andar).
Pasta em cima da secretária, sobretudo no cabide e uma deslocação urgente à máquina do café, precederam o meu melhor momento diário. Antes de começar, dava-me ao luxo de me recostar com a caneca na mão e deixar os sonhos voar pela janela até à primeira montanha que me
cortasse o horizonte. Quase a terminar o momento zen, toca o telefone... nem queria acreditar, o meu amigo Manuel Oliveira, o homem que nunca acordava cedo nem cedo se deitava, companheiro de tantas viagens e que fazia parte das minhas maiores causas de saudade. Manuel, era dono duma clínica e duma boa disposição cativante. Com quase um quilo por centímetro de altura, era a personificação do bom gigante e, por isso, chamava-me de "rasteirinho".
- Olá, amigo! Caíste da cama? Estás bem?
- Nem por isso! V/ Ex-a. tem o dom de me tirar o sono! - O que é que se passa, Manel?
- Olha, nem consegui dormir... só para te dizer que
amanhã, enquanto tu vais ficar aí, no frigorífico, vou voar para Cabo Verde e vou lá ficar uma semana. É uma viagem em trabalho, claro, para os médicos que vão ter que assistir a inúmeros congressos, enquanto eu faço o teste aos bares e às praias para os levar no tempo livre que eles não vão ter.
- Grande sacana! Olha, vais mas não vais sozinho. A que horas parte o avião de Lisboa?
- Às 11:00 da manhã! Porquê?
Olhei para o relógio e pensei: - 9:00! Ainda dá tempo... nem que tenha que ir de carro...
- Vou contigo! Marca lugar para mim.
- Oh Rasteirinho! Não dá, porra! É uma viagem patrocinada por um laboratório!
- Caguei! Desenrasca-te! Eu vou estar no aeroporto de Lisboa a horas...
- Só me arranjas disto. Estou para ver como é que vou dar a volta.
Qual frio? Qual Inverno? Qual Sol desaparecido? Naquele momento, o Sol nasceu dentro de mim e o último gole de café, que eu guardava sempre com tanto carinho, ficou esquecido no fundo da chávena até que eu chegasse do gabinete do meu chefe.
Saí em passo acelerado, bati-lhe à porta e nada...
- Ora bolas!
Olho para o fundo do corredor, lá vinha ele, de dossiers
numa mão e chávena na outra. Esperei, cumprimentei-o e abri-lhe a porta.
- Tão cedo? Há algum problema?
- Não sei! Acho que não! Só se fores tu a criá-lo!
E, sem o deixar respirar, começo o meu discurso:
- Como sabes, não tenho férias há mais de um ano,
tenho passado aqui uns fins de semana e uns feriados, o meu projecto não tem atrasos, portanto, estou mesmo necessitado de férias...
- E por quanto tempo serão? - Perguntou ele, com um ar circunspecto.
- Uma semana!
- Muito bem! Bem as mereces! Para quando será?
5| Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho
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