Page 8 - Boletim nº 251 da APE OUT a DEZ de 2018
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CróniCaS
PALAVRAS DESENHADAS
NO CONTRATEMPO DO TEMPO – DO TEMPO E DA SUA INTEMPORALIDADE
Ernani Balsa
19600300
Havia tempo que o tempo o atormentava. Uma sen- sação mista de espaço vazio e de esgotamento pre- coce e galopante desta dimensão da vida, que o inquietava, o tolhia e ao mesmo tempo o constrangia numa procura incessante de o ocupar, o tempo, e simultanea- mente o fazer prolongar, mesmo perdurar, para alem do horizonte da vida em que ainda caberia o seu sonho e a sua ânsia de continuar vivo.
Olhar o espaço à sua frente. Respirar a paisagem, nem que fosse dum simples muro. Inundar os olhos de vida. Sen- tir o ar a fazê-lo centro daquilo a que se poderá chamar alma. Tudo isto o ocupava na inquietação da sua existência. E era esta também, a existência que fervilhava na sua in- quietude, que lhe ocupava igualmente o temor da tempo- ralidade da vida.
Mas no espaço não procurava apenas imagens ou sen- sações. Procurava essencialmente pessoas e emoções. Era desta mescla lúdica e humana que tinha necessidade de alimentar um vazio que o invadia, dia após dia, desde que se afastara duma vida activa, profissional e cívica que lhe aquecia o sangue, estimulava a iniciativa e fermentava a inquietação que sempre o alimentara.
Agora era o vazio, o silêncio e a solidão que o tolhiam e inquietavam. A indelével sensação de se sentir retirado dum oceano imenso e incontornável e navegar em círculos desesperados, qual peixinho vermelho em aquário redon- do e redutor, numa frustrante insolvência da sua sede de liberdade e imaginação.
O tempo não era já aquela dimensão que se habituara a gerir, por entre a azáfama das suas múltiplas actividades e que, por outro lado, sabia poder controlar ao ritmo dos seus equilíbrios e anarquias controladas. Agora, era o tempo que lhe fugia ao controlo e ele caminhava fora dele. Ora paralelo, ora distanciando-se, para em qualquer momento se voltar a cruzar com ele, criando-lhe a ilusão de que era seu passagei- ro. E eram esses os momentos em que se sentia bem consigo próprio. Mas por outro lado, quantas vezes não despertava e olhava o tempo lá fora, uma nuvem, ou mesmo o céu azul e o tempo que lhe fugia e ele desencontrado de si e de tudo.
E as pessoas... as pessoas que se cruzavam com ele e já nada tinham a ver com o seu universo. Tanta gente, nas ruas, nos cafés, nos centros comerciais e ninguém se lhe di- rigia. Ninguém parecia depender dos seus conselhos e das suas competências e ele não dependia de quem quer fosse. Nada o ligava a ninguém e agora apenas uns escassos, se bem que fortes, laços de amizade, o mantinham unido a um núcleo de amigos e cúmplices do pensamento. E era nessa tertúlia pere-ne e solidária que ele ainda se ia encontrando consigo mesmo.
Em tudo o resto, apenas a escrita lhe servia de apoio, mas mesmo essa, que outrora tanta importância assumira na sua vida e no seu desígnio de homem livre, lhe escorre- gava do caminho que em cada dia retomava, tal como o tempo que o mantinha frágil e inseguro.
Parecia que já nada da sua estrutura de homem cabia no tempo que corria à sua frente, tudo o iludia e o mantinha apenas como visitante esporádico da sua imensamente di- minuta dimensão. Cada vez mais o tempo lhe fugia e ele perdia terreno, sem saber das consequências ou das medi- das necessária para contrariar esta intemporalidade galo- pante que o afectava...
Por vezes, sentia a urgência de parar o tempo, sair da- quele redemoinho que o triturava numa constante perma- nência de si próprio na roda viva da vida que nunca parava, nunca lhe dava um momento de descanso, arrastado pela vida dos outros. No entanto, de cada vez que ensaiava esse congelamento de si próprio, tudo à sua volta o empurrava, o compelia a não parar. O frenesim da vida à sua volta to- lhia-lhe o poder de decidir sozinho o que queria ou não queria. O tumulto das pessoas que por ele passavam, cho- cando até com o sentido único em que ele tentava contra- riar o tempo, era uma força impossível de ignorar. Tudo à sua volta se movimentava a um ritmo que não era o seu, com uma turbulência tal, que o fazia quase entrar em pâni- co, um temor galopante de medo, insegurança e impotên- cia de fazer valer a sua urgente necessidade de, por um mo- mento que fosse, sentir-se solitário no tempo e no pulsar de uma vida â sua volta, que não era a dimensão da vida que ele sentia ser a sua.
Para onde é que se dirigia toda aquela gente, a cidade, o mundo... enfim... a própria vida que se movimentava à sua frente, interrogou-se enquanto tentava ignorar os encon- trões que todos lhe davam, numa total insensibilidade da sua presença. Na realidade talvez não fossem as pessoas que chocavam com o seu corpo, mas antes a vida, ela pró- pria, que contrariava a sua marcha, o seu sentido de viver assim, no lado errado da vida dos outros...
Tentou isolar-se no seu próprio pensamento e abstrair- -se de tudo e de todos. Pensar apenas. Manter os olhos abertos, mas nada ver. Ter consciência da multidão, mas não a considerar. Encaminhar toda a sua energia para um esforço de entendimento sobre o mistério do tempo. Seria o tempo apenas uma sensação que viajava no espaço, ou seria antes o espaço uma consequência da imparável mo- vimentação do tempo?... Se o tempo fosse intemporal, qual seria, então, a sua dimensão. Como definir esta sensa- ção de movimento que as pessoas tinham do tempo que passava?...
6 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • Outubro-Dezembro 2018