Page 12 - Boletim 273 da APE
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UMA HISTÓRIA, DOIS INTERVENIENTES
Um, eu, António Leiria, filho de Tavira, noviciado de cabelos escuros cerrados, olhos relembrando a conquista da Antiga Andaluzia num contexto fisionómico típico Ibérico, naquela personalidade infantil ainda a tentar entender o “Querer é Poder” do Instituto Técnico Militar dos Pupilos do Exército.
Outro, ele, António Teixeira Mota, tripeiro, de olhos Atlânticos relembrando as conquistas Visigóticas, talvez mesmo aquela frieza Sueva e sabedoria Celta, de estatura pequena e seca, tez saliente, naquele olhar observador e crítico, famoso pela sua genuinidade engenhosa, no segundo ano deste Instituto Militar.
O CONTEXTO:
Estávamos no ano lectivo 1973/74. Ambos vivíamos na condição de alunos internos, com restrições de visitas físicas ao mundo exterior devido à nossa pouca idade e ausência de família por perto.
Num dos muitos fins-de-semana quentes e tediosos do ano da Revolução dos Cravos, em que o Pilão ficava praticamente deserto, e os poucos alunos que se encontravam por lá estavam afastados dos seus colegas das turmas semanais, encontrei-me com um destes sobreviventes: António Teixeira Mota!
O OBJECTO:
Trazia consigo, vá-se lá saber porquê, uma lata cheia de tinta azul. Atravessava a parada enegrecida pelo alcatrão e riscada com tinta branca, que demarcava os limites do campo de futebol de cinco, do campo de basquetebol e da pista de atletismo. Quando nos encontramos, passava junto ao muro amarelo coberto por arame farpado, que separava a Escola das hortas e do mundo exterior.
O ENGÔDO:
A temática da nossa conversa convergiu rapidamente para o conteúdo da aguarela azul que ele transportava.
Em poucas palavras descreveu as qualidades de uma tinta especial, tão inovadora que até se podia pintar o corpo com ela, pois com uma simples sacudidela se despegava deste, caindo no chão como se fosse pó.
É evidente que não acreditei naquele discurso típico de vendedor de banha da cobra, de gelados no Pólo-Norte, ou de enciclopédias porta a porta... Contudo, a sua capacidade em insistir nas qualidades da aguarela foi tão convincente, que me levou, de forma nervosa, ao ponto de tocar na tinta com as palmas das mãos.
DEPOIS DE “MORDER” O ENGÔDO:
Para meu espanto, que rapidamente se transformou em desespero, verifiquei que aquela aguarela era
tinta plástica e não se separava dos membros já azulados com a facilidade que ele tinha apregoado.
Pedi-lhe ajuda ou recomendação para me livrar daquele produto químico, mas esta foi acompanhada por um sorridente escárnio, tendo- -me dito apenas e de forma evasiva:
- Desenrasca-te!
O “DESENRASCANSO”:
Claro que tive de encontrar uma solução para me livrar daquela tinta azul, na qual não fui obrigado a tocar, mas que a minha curiosidade ingénua quis verificar se eram verdadeiras as qualidades apregoadas.
Por sorte, acabei por não passar o resto do dia a tentar removê-la com água e sabão, porque uns soldados que prestavam serviço no Instituto, me ajudaram provavelmente com diluente ou outro produto qualquer a lavar as palmas das mãos.
Esta é uma das muitas memórias que guardo do meu amigo 21, que facilmente aprendeu a viver no internato, a quem os mais
velhos protegiam e achavam
alguma piada, o qual dava uns toques no futebol e me pregava de vez em quando umas partidas, porque eu nunca sabia se ele estava a falar a sério ou a brincar, e que hoje, saudosamente, me faz recordar os bons velhos tempos passados no Pilão.