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EVOCAÇÕES 41
BOLETIM APE | JUL/SET 2023
Já lá vão 54 anos quando ouvi contar, pela primeira vez,
o episódio que vou relatar, contudo, precisarei de o
enquadrar.
Na cidade da Beira, em Moçambique, corria o ano de
1968, esperávamos a Caravana da Amizade, e havia que fazer
todos os preparativos para proporcionar aos alunos e aos
oficiais as melhores condições de estadia, com os prazeres
possíveis e o turismo aceitável. Assim, fruto de circunstâncias
várias, consegui reunir uma comissão executiva da qual fazia
parte o decano dos ex-alunos na Beira, o saudoso Fernando
Baptista Alves, que tinha a idade do meu pai e larguíssimos
anos de Moçambique. Havia entrado para o Pilão em 1919 e
tinha tido o número 230. Era um homem circunspecto, que
só falava quando era para dizer coisas acertadas.
Creio que, por volta do ano de 2005, escrevi aqui, no
Boletim, bastante sobre o Fernando Alves. Hoje, quero só
deixar um breve apontamento sobre o tal episódio que
vai dar conta de como se exercia pedagogia civil e militar,
patriotismo e isenção política no, então, ainda e só Instituto
Profissional dos Pupilos do Exército, onde ensinavam
professores militares (alguns de alto gabarito castrense,
com folhas de serviço exemplares) e professores civis, dos
quais destaco a figura modelar do Professor João Soares,
ex-sacerdote católico, pai do político Mário Soares. E porque
gosto de justificar algumas das minhas afirmações mais
polémicas, recordo que o Professor João Soares, autor de
um Atlas em língua portuguesa, que chegou a ser adoptado
nos liceus do país, o único título académico que invoca nesse
livro era o de Professor do Instituto Profissional dos Pupilos do
Exército ou, nas edições seguintes, o de Antigo Professor do
etc. Ora ocorre que ele foi ministro das Colónias e os alunos
mais velhos, no qual se incluía o Fernando Alves iam para
as aulas sempre muito atentos na esperança de o ouvirem
dissertar sobre a política nacional. Nunca o fez, por uma
questão de ética democrática, permitindo a cada aluno a
possibilidade de fazer a sua escolha.
Mas voltemos ao que de mais importante vos queria
recontar, porque me foi contado pelo Fernando Alves.
Num determinado dia 10 de Junho, de um ano que não
recordo, foi convocada para junto da estátua de Camões
(que se deve a um tio do ministro da Guerra – capitão Pereira
Bastos – autor do Decreto de 25 de Maio de 1911, fundador
da nossa Casa), no Chiado, uma manifestação da juventude
lisboeta.
Ora, a meio da subida do Rossio para o largo ouviu-se
uma tremenda explosão, talvez de um petardo de peso
grado, que levou à dispersão de todos os populares que ou
assistiam ao cortejo ou iam nele incorporados. Foi a grande
balbúrdia, pois, como era natural, aquele devia ter sido o
aviso para o começo de mais uma bernarda (nome dado às
revoluções naquela época) havia que ou fugir ou escolher
o lado onde se encontravam os simpatizantes das facções
Luís Alves de Fraga
19540282
Dos Filhos da República
à isenção partidária
em confronto. O batalhão de alunos dos Pupilos manteve-se
coeso, embora assustado. O que fazer?
O oficial que acompanhava os alunos tomou uma
iniciativa, a única que se cultivava na Casa, que também foi
a nossa: como filhos da República indiferentes a facções
políticas, habituados a que dentro das paredes do Instituto
não havia nem política nem politiquices, começou a cantar
o hino nacional, A Portuguesa, indicando que ali seguiam
somente republicanos a quem só interessava a defesa
da República. E foi, nas saudosas palavras do Fernando
Alves, como se se tivesse criado um oásis no meio de uma
tempestade de areia: os civis perfilaram-se, tiraram o chapéu
em saudação ao hino e lá seguiu ao seu destino o batalhão
escolar, dos mais pequenos aos mais graúdos, ainda fardados
de marinheiros.
Que bela Lição deram aquele oficial e aqueles alunos!
Os mais altos valores da Pátria têm de se sobrepor às
desavenças partidárias. Os partidos fazem-se e desfazem-se,
mas a Pátria, essa, tem de ser eterna.