Page 44 - Boletim numero 261 da APE
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PALAVRAS SOLTAS
BOLETIM APE | ABR/JUN 2021
António Santos
19730262
Da cor da cal
Preciso de
das paredes do
espaço e de
Pilão
tempo
Com os meus melhores amigos
Fiz as provas em terras de capim Contávamos 10 anos bem medidos Escolhidos a dedo ao som do clarim
De sorrisos rasgados de alegria Incorporámos à Metrópole mãe
Perguntei sobre a escola que tanto se ouvia Disseram-me que era especial tomara quem
E quando dei por mim
A dormir com um enxoval completo Era o meu Universo assim
Uma camarata de beliches até ao tecto
A camaradagem e os valores do rigor Foram os nossos primeiros professores Neste aquário aprendi com o meu suor O peso do Mundo e os seus bastidores
Arranjámos emprego logo ali à saída
Tal a fama da escola e dos bravos rapazes Casámos e fomos a correr pela vida
Com o lema que sempre nos guiou audazes
E quando dei por mim
Era o homem do leme e de muita gente
Que me julgavam assim
Como na nossa Casa “tão bela e tão ridente”
Agora que a vida já não nos obriga a tanto Temos tempo para ver como o tempo voa Na família e nos camaradas que entretanto Doem na saudade que o tempo não perdoa
Com as tecnologias modernas voltei a ver-te Estás na mesma com mais quilos de sabedoria Voltaram os abraços que numa lágrima verte A memória do tempo que a juventude vencia
E quando ao espelho dou por mim Com a Barretina no lado do coração Aprumo no rosto a barba de marfim A cor da cal das paredes do Pilão
Preciso de tempo. De espaço. De horas vazias, sem nada em que pensar, para poder pensar em tudo o que me apete- cer. Preciso de mim dentro de mim, um meio de me esclare- cer de tudo aquilo que se sobrepõe a mim, sendo que não serei eu o centro de mim mesmo, mas antes poderei me ob- servar de fora daquilo que normalmente sou.
Preciso de saber aquilo que ainda não sei, o que ficou per- dido nos anos da minha existência em que me perdia a ser quem verdadeiramente não sou... Mas era a vida que tinha. Os anos que vivi sem saber quem era, vestindo a farda de outro que nunca fui. Agora, que tenho todo o tempo do mun- do para me encontrar, falta-me cada vez mais tempo para ser. Ser aquilo que poderia ter sido. O tempo escasseia e con- fesso que a morte me incomoda. Aliás, a morte, como já es- crevi um dia, é um mal desnecessário que nunca deveria acontecer em vida. Preciso de tempo e de espaço para me reconstruir, agora no ser que sempre terei querido ser, mas que nunca tive oportunidade de o conseguir.
É por isso, talvez, que bebo e sorvo toda e qualquer for- ma de cultura. Da literatura às artes plásticas. Da música ao bailado, contemporâneo, de preferência. De tudo necessito para me preencher de novo o conhecimento. Da ciência tam- bém, da filosofia, que me enche de ânimo para poder pensar o impensável e descobrir a inexistência do absoluto. Preciso visceralmente do abstracto, para poder criar a aceitação do que não é geralmente entendível ou correcto. E por isso con- sumo informação de cada vez que respiro, de cada vez que caminho, de cada vez em que estou simplesmente sentado a ver um filme, uma conversa, a ler um poema, a imaginar-me numa sala de teatro e ser eu o único a entender o discurso dos actores... e emocionar-me, sentir as lágrimas no rosto a premiarem a magia de sentir e com isso me sublimar na fra- queza de ser apenas alguém capaz de exprimir a emoção de entender os outros. E no fim de tudo aplaudir...
Preciso de estar só e na companhia de todos os amigos e saber que posso contar com eles e eles comigo. Do amor, te- nho uma obscura dificuldade em conseguir identificá-lo. Reco- nheço a paixão como uma forma de amar, a prazo e sem com- promisso, intensamente e sem restrições. Mas apenas isso! A amizade, sim, é o elixir da minha solidão, que me completa e me alimenta todas as exigências desta maravilha de estar vivo. Gosto de estar só e acompanhado. Algo que se conjuga numa ideia de comunidade que vai da solidão ao mundo.
Sim, preciso de espaço e de tempo para continuar o meu caminho...
Ernâni Balsa
19600300
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