Page 5 - Boletim numero 255 da APE
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Um ancião que perdeu o direito de manter-se fiel a
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emoções nobres
Jacinto Rego de Almeida
19520049
“Sabes quem está a falar? Vê lá se advinhas?” (Pausa) “Não nos vemos há mais de cinquenta anos, éramos vizinhos, sou o Aristides... lembras-te?”.
“Aristides? (Pausa) ó Aristides.”
Em sua maioria, os velhos, vivem presos a experiências e aconteci- mentos de uma época ultrapassada e tornam-se insensíveis ao pre- sente. E um encontro entre dois velhos que não se vêm há várias déca- das é um risco, mas combinei encontrar-me com o Aristides no dia seguinte numa esquina da Almirante Reis perto do Martim Moniz.
Adolescentes, fomos a Fátima (a única vez que lá fui) com os pais do Aristides, sussurrei Avé Marias e Pai Nossos, chovia e a lama mis- turava-se com bengalas, muletas e coros de padres e freiras velhas e austeras.
A caminho do Martim Moniz, receei não reconhecer o Aristides, contei os anos, não o via há mais de sessenta, pensei que tivesse morrido.
Fui uma vez a sua casa (porque este pensamento sem importân- cia me assaltou a memória?), a mãe abriu um pacotinho de bolos, “não queres um?”, o pai gordo com papada... e lá estava na esquina a fumar um cigarro um sujeito que me lembrou vagamente o pai do Aristides. Era ele mascarado de pai, de pai de si próprio, a cara, o corpo, o cabelo todo branco, o sorriso e os gestos de um ancião, “aperta cá esses ossos”, “dá cá um abraço, estás mais gordo, pareces o teu pai”.
Ele riu-se e deu uma palmada na barriga. Ao rever o meu vizinho de infância vi a minha idade na cara dele.
“Sou viúvo e a minha irmã, a Rosário, faleceu há quatro anos, lembras-te dela?”, “Não, não me lembro. Tinhas uma irmã?”. “Sim, acho que ela foi connosco a Fátima... não, não foi, ela estava com gripe, chovia muito e ficou com a minha avó. Vamos beber um café ali na esquina?”
Passou por nós um homem a distribuir um papel com um anúncio de “Mestre, astrólogo medium africano, grande cientista espiritualis- ta descendente de uma antiga e rica família com conhecimentos de magia negra e branca. Trata amor, doenças físicas e espirituais, negó- cios, impotência sexual, justiça, inveja, vícios de droga, tabaco e álco- ol... assuntos tratados com sigilo”. O Aristides despachou-o, “vigarice, vigarice”. Atravessaram a rua uns negros a correr e a fazer algazarra. O Aristides virou-se para vê-los: “Estava-se melhor nos tempos da ou- tra senhora. Estes gajos...a democracia não é o que pensávamos. Dan- tes havia respeito e paz”. O Aristides deixou corromper a sua integri- dade juvenil para ser corrompido pelo ressentimento, penso.
“Foste à guerra d`África?”
“Fui, estive em Moçambique”, respondi.
“Eu fui comando em Angola”, parou, subiu a calça da perna direi-
ta e vi uma barra de metal por baixo da meia, “foi uma mina”. Muletas em Fátima, coros de rezas, chuva, muita chuva, peregri-
nos a esfregarem-se no chão enlameado a chorarem, rezarem... “Fiquei oito meses nas terras do fim do mundo e fiz lá amigos. Depois, habituei-me à prótese”, e riu-se como se tivesse ouvido uma
piada.
“...tens visto o Eustáquio? E o Rebordão?”, perguntei.
“O Eustáquio, o matarruano, morreu há uns anos com um cancro e o Rebordão era motorista de táxi e deve estar reformado, nunca mais soube dele.” A mãe do Rebordão, uma mulata gorda lavava a roupa num tanque, “vem-me ajudar a bater o tapete do quarto”, gri- tou para o filho uma vez que passei pela casa dele, lembrei-me.
Chegámos ao Café e sentámo-nos na esplanada. “Eu pedi uma bica cheia e você...”, disse o Aristides aborrecido para o empregado, a apontar para a chávena, “Desculpe, desculpe, vou enchê-la mais”.
Depois falou das ameixas de Elvas, “este ano elas estão uma ca- tegoria, comprei ontem um pacotinho na mercearia do outro lado da avenida”. Muletas, velas a acender, peregrinos, rezas, Avé Maria cheia de graça, “não posso beber café forte...”, muletas, Pai Nosso que estais no céu...e disse-lhe que, “por motivos que não vêm ao caso, tinha ido há meses ao velório do Praxedes.”
“O Praxedes morreu?”
Disse-lhe que ao entrar na agência funerária, o Praxedes estava no caixão à espera do transporte para a capela mortuária. A urna estava aberta e ele parecia confortável e bem acomodado, a cabeça repousava sobre uma pequena almofada e vestia um fato azul escuro com uma gravata estampada. O rosto fora barbeado, as sobrancelhas e o pequeno bigode davam-lhe um aspeto burguês, um ar natural e inocente. A vida correu-lhe mal (“tudo o que não for grátis, para mim é caro”, dizia o Praxedes), era um campónio, um filhote do Estado Novo... (o desânimo e a humilhação da população portuguesa duran- te o longo período do Estado Novo deixou boa parte das pessoas sem o direito de manter-se fiel a emoções nobres, penso).
“Estive com ele na guerra em África, era um coitado. Acho que foi ele que me deu o teu número de telefone”, interrompeu-me o Aristides. “Nunca vi o Praxedes tão aprumado como no caixão, pare- cia um anfitrião de um restaurante de luxo. Percebi pelas conversas de velório que o fato fora doado por um parente e a gravata por um vizinho a pedido de um dos filhos. às tantas entrou um sujeito com uma pequena bandeira do Sporting para cobrir o tronco do Praxedes e as pessoas bateram palmas”. Fiz uma pausa e acrescentei: “Nos funerais, nos últimos anos, o desânimo desaba sobre mim em segre- do, quando pensamos que todos vamos morrer, afinal o dia mais im- portante da vida tal como o do nascimento. Parece que tudo o resto, sem exceção, é muito breve, tão vão... então saí apressado da agên- cia ao ver um homem a pedir colaboradores para carregar o caixão que ia ser encerrado. Vamos mudar de assunto?”.
E ficamos a olhar um para o outro sem saber o que dizer. Ele quebrou o silêncio: “Lembro-me que ele era doente pelo Sporting lá em África, coitado do Praxedes. E o Ronaldo?”, “Ronaldo? qual Ro- naldo?” perguntei. “O Cristiano Ronaldo”, respondeu-me o Aristides e acrescentou: “Tu ainda és do Benfica?”. Com calma, enrolei um ci- garro e consultei o relógio, pensei na desculpa que iria dar ao Aristi- des para voltar para casa, “sou, sou do Benfica”.
há encontros que é melhor não ter, pensei, acendi o cigarro, pedi a conta ao empregado e na despedida dei-lhe uma palmada carinho- sa na barriga entre sorrisos mútuos.
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