Page 16 - Anexo do Boletim numero 254 da APE
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PALAVRAS SOLTAS
Sonhos
Sonhei!... Sim, porque quando se deixa a fantasia vaguear, em liberdade, o sonho toma asas e percorre os espaços. É como uma ave que deambula de lugar para lugar sem nunca se quedar, quieta, num mesmo sítio.
Foi assim que, num dos meus longos sonhos, me deparei com Florbela, numa encruzilhada da Via Láctea, que passeava descuidada, pensando talvez nalgum soneto que estaria congeminando. Quando, com euforia, me apresentei como conterrâneo, encetámos um agradável, mas informal diálogo, após um longo abraço de confraternização. Comecei, então, por lhe dizer:
Florbela, que prazer minha alma tem Por saber que te encontras sempre bela, Que vagueias, agora, como estrela, Neste céu que é de todos, de ninguém. Tomara eu ser um mago que contém Poder p’ra te fazer a Cinderela,
Serias mais formosa, ainda, que ela, Voltarias à terra, para alguém.
E essa tua tristeza acabaria,
Porque o amor buscarias, dia a dia,
E sempre, sempre de cabeça erguida.
E sonhei que isso vai acontecer
Para que nunca mais possas dizer:
- Eu sou a que no mundo anda perdida.
Florbela parou, meditou, longamente, contemplativa, mas com uma expressão agradada no rosto, e respondeu, sorridente:
- Poeta, pegaste no meu verso e conseguiste transformá-lo numa promessa de esperança, daquela esperança que, enquanto viva, nunca tive, talvez porque foram demasiadas as desventuras por que passei.
- Esperança que, assim tu o queiras, se poderá concretizar...
- ... não, não, o amor, se for esperança, é sempre triste e, raramente, tem um epílogo feliz. Permite-me, no entanto, que me defina, que te fale um pouco mais de mim... não só para que me conheças melhor, mas para te dizer, realmente, que
Eu sou a que, no mundo, anda perdida, Eu sou a que, na vida, não tem norte Sou a irmã do Sonho e, desta sorte, Sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa ténue e esvaída,
E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste, sem o ser... Sou a que chora sem saber por quê... Sou talvez a visão que alguém sonhou. Alguém que veio ao mundo p’ra me ver E que nunca, na vida me encontrou.
- “Sou a que chamam triste, sem o ser...”, eis uma afirmação que não corresponde inteiramente à verdade, já que, ao longo de toda a tua poesia, a tristeza é sempre uma constante. Em qualquer dos teus livros, ela se manifesta em todos os teus poemas, construídos com o rigor exigido.
- Talvez... talvez, mas porque o amor sempre me fugia e nunca deixou de ser apenas uma mera esperança, aquela mesma esperança que cedo me deixou...
- ...amor por quem tu corrias e... não sabias conservar. Se tomarmos o teu último verso, até te poderia afirmar:
E que nunca, na vida, me encontrou, Dizes tu com mágoa e com tristeza. Porque nunca quiseste, com firmeza, Ir ao encontro de quem não te achou. A sombra, na tua alma, se alojou
E ali, ficou retida, ficou presa,
Sem resquícios de amor e de beleza,
E a lágrima, no rosto, então, brotou. Dizes que choras sem saber por quê,
É sofrimento atroz que ninguém vê,
Que corre a noite até que o sol desponte.
15 | Anexo Digital ao Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • julho a setembro
---------------------------------- António Barroso (Tiago) 19460120