Page 42 - Boletim APE 253
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 PALAVRAS SOLTAS
SVoluço tardio
19460120
              inha de longe, de muito longe, como que transportada no bramido da onda de encontro à falésia, uma voz cava, com reflexos de trovão, que bramava qual vento
passando entre as ramas do pinheiro. A névoa que o envolvia, ora se dissipava, por breves instantes, ora mais toldava o am- biente. As palavras, distorcidas, eram vibrações pressentidas, que não conseguia localizar, sons que o abraçavam no des- conforto dum amplexo que sufoca, duma náusea que inco- moda, duma quase inconsciência que o ia mergulhando no esquecimento.
– Oh! Seu Zé! Vamos, homem... tem de ir para casa. São horas de fechar.
Como que a dar ênfase aquela advertência, um punho for- te bateu, com vigor no tampo de madeira da mesa e, por en- tre a penumbra que lhe toldava a mente, ainda conseguiu ver uma cara disforme com um esgar enorme e medonho, que se aproximava, para logo se afastar, como as recordações amar- gas que tentava esconder dentro de si mesmo.
– Só... mais um... é... é... é pró caminho...
A voz, entaramelada, parecia-lhe desconhecida, vinda dum fundo que não descortinava. A rouquidão seria dele pró- prio? Soergueu-se um pouco, com a vasilha, precariamente, empunhada na mão trémula, e escorropichou um resto no copo vazio, donde lhe pareceu surgir, de repente, a imagem, já tão sumida, de Joana. que raio! Como teria ido parar ali dentro? Foi ontem ainda, no outro mês, ou já se passaram séculos? que importa? O tempo não se mede. Felizes, isso sim, foram, sem dúvida. Tantos, mas tantos anos em comum, uma vida tão cheia e repleta de silenciosos entendimentos, rejubilando com as alegrias mútuas, e rindo, com prazer, das travessuras dos filhos, caminhando nesse presente com as mãos unidas, projectando o futuro, que tudo indicava ser cal- mo e colaborante. Nesse tempo, apenas se apercebiam do crescimento do Paulo e do João e, olhos nos olhos, numa cumplicidade serena, seguiam, confiantes, o rumo traçado em conjunto.
– Seu Zé, já chega!... Por hoje, tem a sua conta, e eu tenho mesmo de encerrar.
Hoje? Mas que dia é hoje? E que dia foi ontem? Amanhã também será hoje? E este hoje é que é o futuro sonhado? Raio de vida. Porquê? Porquê? Também foi num hoje já pas- sado que, confusamente, agora, deve ter sido ontem, que ela lhe surgiu pela primeira vez. Inesperadamente!... Manuela?... Ou seria Gabriela? Também, que importa o nome? um nome, é somente um registo numa repartição, não tem sentimentos, não é uma pessoa, e ela era tão fresca como o orvalho da noite, tão perfumada como o botão de rosa que desabrocha, tão graciosa como a andorinha que faz o ninho no telhado, tão sensual como a chama da fogueira que aquece a alma. O passado passou a ser isso mesmo, apenas um passado que se trancava num sótão fechado a cadeado, que se transformava num hoje, para dar lugar a uma nova promessa de futuro, a um rumo mais promissor, a uma esperança que relegava para o esquecimento instantes que se viveram felizes. Cortaram-se
António Barroso (Tiago)
todos os elos da corrente e arrancaram-se, abruptamente, os laços que já tinham ramificado e criado raízes. Esqueceram-se os projectos arquitectados em noites de vigília e de sonho, rasgaram-se os planos comuns para o futuro, afugentaram-se os sonhos que povoavam as noites, porque, de repente, tudo se transformou em passado sem deixar sequer o prazer da recordação, na azáfama em que se embrenhou, num hoje sempre repetido..
– Amigo Zé, não aviso mais...
– ... mas ainda não... encheu... um... um... mais um... Começou, então, uma nova vida. A antiga enterrou-a na
vertigem de novos acontecimentos, novas amizades, do salto duma recepção para um evento social, dum cruzeiro por ma- res desconhecidos, para as férias em locais exóticos, do voo dum local de neve para uma caçada no quénia. Porém, o en- canto inicial foi cedendo ao cansaço das obrigações sociais tão exigentes, à rotina do continuado, à ausência de valores de espírito que superassem os prazeres do quotidiano. A vi- vência permanente e repetitiva, acabou por encontrar as im- perfeições, os defeitos, as deficiências que o primeiro contac- to mantivera encobertos por uma imbecil cegueira apaixonada de meia idade. Depois, o permanente bulício das multidões em locais de distracção, os arranjos pessoais para cumpri- mento de promessas de comparência, o ruído das músicas modernas, o caleidoscópio das luzes giratórias, escondiam- -lhe uma realidade bem patente para um observador impar- cial, mas que ele se recusava a encarar e, se o corpo se revol- tava com o ritmo imposto, tentava refugiar-se em si próprio, fugindo às vozes que o cercavam. A bebida foi o seu último refúgio, a sua companheira das horas amargas, o esqueci- mento. E, agora...
– Oh! Zé... Já estou farto de pedir, tem de sair mesmo... não lhe digo mais...
– Merda de vida...
Com extrema dificuldade, levantou-se com a ajuda dos cotovelos apoiados na mesa e, embora cambaleando, conse- guiu dirigir-se em direcção à porta, encostado a uma parede que lhe impedia a queda. Lá fora, na noite de bréu, o escuro, o vazio, o nada. De sentimentos encobertos pelos vapores da bebida, e de alma oca de emoções, as recordações enreda- vam-se numa mistura de realidade e fantasia que lhe embota- vam a mente. Parecia um filme a preto e branco onde as ima- gens se entrechocavam numa paisagem em destroços. Pé ante pé, ombro roçando a parede húmida e fria, avançou uns passos em direcção ao desconhecido. Com dificuldade, bai- xou-se para apanhar a ponta do cigarro que lhe caíra da mão trémula, e que a luz do candeeiro iluminava, mas o peso do álcool que carregava fê-lo cair na calçada suja.
Apetece-lhe dormir, estendido na rua enlameada.
Dobra um braço para suportar a cabeça.
Da cara rugosa e de barba espessa, rola apenas uma silen-
ciosa lágrima que se vai misturar à terra negra que as pedras cobrem, e pensa, amargurado, com um soluço tardio, que o tempo que vai já não volta.
    40 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • abril a junho











































































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