Page 37 - Boletim APE - 250
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lEituraS
O CAsTElO
(Gostaria de ser Kafka para poder escrever sobre Kafka)
Já li tanto e afinal tenho lido tão pouco. Fugi sempre de ler Kafka pela fama que o autor tinha de ser demasia- do complexo e difícil. resolvi ler o Castelo e digo-vos que afinal as opiniões estavam certas. O livro é difícil e di- fícil é escrever algo sobre ele.
Este livro, sendo de uma escrita corrente e descompli- cada em termos de cursividade, é duma complexidade tremenda em termos de conteúdo. um homem, conside- rado estrangeiro, por ser de fora, chega a uma terra com uma carta de chamada para exercer a profissão de agri- mensor.
K, é esse o seu nome apenas, repare-se na inicial, ao chegar, prepara-se para se dirigir ao castelo, origem da carta que tem no bolso. A partir daqui é colocado perante várias dificuldades de atingir o seu objectivo apesar dos esforços que vai despendendo. Prosseguindo na sua vã tentativa de atingir o Castelo (o poder), vai conhecendo vários habitantes da aldeia que, por um lado, o vão admi- rando pela sua determinação de lutar contra o poder insti- tuído, mas por outro lado, lhe vão criando imensos proble- mas, criticando-o por vir destabilizar a forma, acomodada, como viviam sob aquele poder, que respeitavam e até de- fendiam. Trata-se pois, de poder, do povo sob o mesmo, mas que até o defende por dele depender, e da oposição minoritária, que vai lutando contra tudo e contra todos tentando desmontá-lo, mas que só encontra entraves e desconfiança. Mesmo os poucos aliados que vai conse- guindo, por um lado admirando-o pela sua coragem, por outro, criticando-o pela ousadia da sua tentativa que os destabiliza, acabam por o abandonar. O estranho da narra- tiva, é que toda ela se processa numa dialéctica nada ade- quada aos personagens, gente pobre de baixas profissões, mas rica e inteligente como se de intelectuais se tratasse. O Castelo, muralha intransponível e inacessível, com os seus senhores, que “despacham”, não em gabinetes como seria de esperar, mas numa pousada “Pousada dos senho- res”, em quartos, com os seus criados, secretários e servi- dores, todos eles, conhecidos pelos nomes, mas tão dis- tantes e descaracterizados que muitos não os reconhe- cem, não se relacionam com quase ninguém abaixo da sua condição com excepção de algumas raparigas da aldeia com quem vão mantendo algumas relações, completa- mente dessentimentalizadas.
A forma como as personagens se relacionam e se entrecruzam, cria um sentimento de repulsa ao leitor a todo o ambiente, percebendo-se que a luta de K é inglória
rui Cabral Telo
19480265
e que ele próprio se vai acomodando com aquilo que o deixam ser e não com aquilo que quer ser. Enfim, a eterna luta contra um fascismo emergente numa Europa inter- -guerras. uma tentativa do homem contemporâneo em luta pela liberdade e contra os impérios. A influência da literatura de Kafka tem-se estendido a vários autores e em várias épocas. lembro um, japonês, que admiro bastante, Haruki Murakami no seu “Kafka, à Beira-Mar” sobre o qual escrevi há pouco tempo. Bastante notória é também a in- fluência de Kafka no seu romance “O Admirável País das Maravilhas e O Fim do Mundo”.
Boletim da Associação dos Pupilos do Exército • Julho-Setembro | 35